Ela é uma menina sem pai. Começou a trabalhar cedo. Sustenta a mãe. Não tem grana para fazer uma faculdade. Secretária. Vendedora. Recepcionista. Promoter. Ela é bonita. Sabe disso.
Ela é uma menina sem pai. Não lembra bem dele. Tinha só seis anos quando o mataram. Nunca prenderam o assassino nem tentaram achar, na verdade. “Papai foi pro céu.” Repetiu isso a si mesma e para as amiguinhas da escola. A vida continuou. Implacável como um rio transbordando. A menina cresceu. Virou mulher. Linda. Morena com uma pele de canela. Cabelo liso. Sorriso de princesa. Ingênua e cândida. Alma imaculada. Mas ela é pobre. Família carente. Periferia de São Paulo.
Ela é uma menina sem pai. Começou a trabalhar cedo. Sustenta a mãe. Não tem grana para fazer uma faculdade. Secretária. Vendedora. Recepcionista. Promoter. Ela é bonita. Sabe disso. Os homens a fazem lembrar-se disso a cada dia. Sabem também que ela é pobre e que o dinheiro não chega para viver dignamente na cidade mais cara da América Latina. Convite para passar fim de semana com o patrão. Convite para camarote VIP com o filho de outro patrão. Xaveco sem-vergonha do cobrador do ônibus. Assédio do colega. Os lobos estão aí. De prontidão. Humanos. Humanos demais. Querem te agarrar. Mas tu és ingênua. Pura. Inocente. Órfã. Sabem disso também.
Ela é uma menina sem pai. Ganhou bolsa do governo para fazer faculdade. Finalmente. Estuda propaganda à noite. Recepcionista de dia. Horizontes novos. Passa a gostar de livros. Namora. Namora um professor da mesma faculdade privada e ruim onde estuda. Cinquenta anos de idade. Moram juntos. Agora ela sente menos a penúria. Ainda manda dinheiro para a mãe. Fala com ela uma vez por semana. Mas sabe que ela sempre preferiu o filho mais velho. Um bosta sem tirar nem pôr. Segurança numa escola municipal. Só pensa no futebol e no MMA.
Ela é uma menina sem pai. Sabe que o namorado mente, trai e trata mal. Aguenta. Pensa em largar dele. E ir pra onde? Não tem dinheiro. A mãe não a quer de volta. Aguenta firme. Até o dia de um churrasco no sítio.
Era feriadão da Independência do Brasil. O sítio é do amigo do namorado, um delegado aposentado. Teoricamente, um fim de semana como outro qualquer. No fim da tarde, ela vai deitar, dor de cabeça, música alta. Cai no sono. “É só uma soneca, Amor. Me acorda se precisar de mim.” Frio. Passa meia hora. Abrem a porta do quarto. Acorda. Vê o namorado, de cueca, sentado na cama. Vê o amigo delegado se aproximar. Sem camiseta. Toca nela, nas costas e no cabelo. Congela. Olha para o namorado pedindo socorro com os olhos. Não consegue falar. Terror. O ataque continua. O namorado baixa a cueca. O amigo tira a bermuda. Seguram os braços dela. Agora grita:
― Me solta! Me deixa em paz. Por favor! Me solta. Amor, por favor, não faz isso. Amor, pede pra ele me soltar. Socorro! Os dois monstros covardes decidiram abusar da inocência.
― Filha, não adianta gritar, ninguém vai te escutar no meio do mato.
Ela é uma menina sem pai. Deixou o namorado. Levou com ela uma mala só. Roupas, nada mais. Três anos de vida em comum. Ele ficou com os poucos bens que ela havia acumulado em vinte e dois anos de miséria. Plasma, notebook, sofá. Não pediu ajuda para a mãe nem para o irmão. Também não contou nada pra ninguém. Sabe que não adiantaria nada. Ninguém ajudaria. Acusar um delegado, sem testemunhas? Sem chance. Lembre-se, ela é uma menina sem pai.
Esses dias aí, eu a encontrei no Itaim. Na varanda de um restaurante de luxo. Linda. De minissaia e salto alto. Abraçando um velho gordo nojento. Me viu e não quis falar comigo. Fiquei longe, observando. Olhar vazio. Ar de patricinha fresca. Mas sem a autoconfiança de gente rica. Chega o carro do velho. Um carrão. Sobem e somem de vez.
Ela é uma menina sem pai. Nasceu pobre, linda e inocente. Cinderela da periferia. Esforçada e digna. Surgiram os lobos e ao redor deles uma porção de cordeiros covardes vendo e calando. Inevitável que se transformasse em outra pessoa. Mulher. Adulta. Sem fé. Mercenária. Só o dinheiro lhe interessa, hoje em dia. Mas nem como puta ela se dá bem. Queria ser loba entre lobos. Empresária entre empresários. Mas nunca vai ser nada mais que uma Cinderela abusada por um príncipe vagabundo. Uma princesa violentada por um povo nojento e vil. Uma menina sem pai.
Trecho do “Era para ser uma história de amor”, obra de ficção escrita em 2015, procurando editora. Registro FBN efetuado. Todos os direitos reservados.
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