As varizes do líder são razão de estado. O Daddy estava sorumbático e macambúzio porque não podia andar a cavalo. E um ambiente de luto se abateu sobre os corredores do palácio.
Resolvi combater o Hermann assim que ele desceu do avião. O Doc, como passou a ser chamado, virou meu inimigo. Não importa o porquê.
Quem seria aquele brasileiro com nome alemão? Um psiquiatra nascido no Brasil, formado na França e que vivia na Suíça. Isso soava estranho para mim. Diziam que era dono de uma clínica em Zurique, mas o nome dele não constava no site do estabelecimento…
Andava permanentemente de blazer e gravata. Sempre impecável. Escolhia as cores com esmero. Cabelo curto e de aparência macia. Olhos azuis. O Doc irradiava uma imagem saudável e ilibada. Impossível vê-lo suar, apesar do tempo abafado de Marfilia. Devia usar algum truque para parecer superior a nós, uma fonte de beleza sobrenatural. De qualquer maneira, o idiota deveria entender que naquela terra quente e apaixonada o que importa é ser macho. Saber se defender. Não ter limites para estabelecer que você é quem manda. Se não for assim, você acaba como escravo de alguém ou, pior, em uma vala comum.
Tentei de tudo para desestabilizá-lo, mas não deu em nada. Por algum tempo. Na minha função, era proibido se desesperar!
Daisy tentou seduzi-lo. Meu alterego sexualizado do Hotel Trópico não conseguiu “trabalhar” o Hermann. Menina perseverante, mandou ao ataque outras companheiras da tropa de elite erótica. Mas o Doc demonstrou uma fria cortesia e descartou as oferendas. Tentamos de tudo, até que meus “traficantes” se prontificaram a vender-lhe qualquer tipo de entorpecente. Bingo! Aceitou cocaína. Um psiquiatra que precisa de cocaína, eis um paradoxo saboroso! Tiramos fotos do flagra e instruí todos a calar a boca. Não podia ainda quebrar o novo gadget do Daddy.
O Chief só tinha o Hermann na boca. Que ele era uma estrela da medicina mundial! Que tinha deixado de comparecer a um congresso para atender ao pedido da filha do presidente! Que pretendia abrir um centro de pesquisa em Marfilia! Que havia se formado em clínica geral, cardiologia e psiquiatria! A gota d’água foi quando o Chief anunciou a nomeação dele como cirurgião dos boinas vermelhas. Foi uma maneira elegante do Daddy de não desmoralizar o próprio médico pessoal, um velho oficial belga que se estabeleceu na África depois de se aposentar. De fato, o Doc nunca pisou o chão do hospital militar. Esperto, ele se especializou na saúde do Chief e sua família, a única coisa que importava em Marfilia. Talvez tenha ouvido falar da proverbial fascinação do Chief pela profissão médica e quem a pratica; não é à toa que casou com uma neurologista. Ela chegou a patrocinar um programa de clínicas populares e ficou muito querida por atender grátis, aos domingos, no próprio palácio presidencial! Contudo, o casal se separou rapidamente. As más línguas disseram que Daddy via na esposa uma potencial adversária política. Teria advertido o marido que capacete e gás pimenta não trazem comida nem saúde aos pobres. A versão oficial conta que ambos se divorciaram por consentimento mútuo, e que a ex-primeira-dama foi representar Marfilia na Organização Internacional do Café, em Londres.
O primeiro grande teste do Doc teve por motivo as hemorroidas do Chief. Regime personalizado é assim. As varizes do líder são razão de estado. O Daddy estava sorumbático e macambúzio porque não podia andar a cavalo. E um ambiente de luto se abateu sobre os corredores do palácio. Os membros do gabinete (além de toda classe de bajuladores de elite) entraram em competição para saber quem imitava melhor a dor do Chief na hora de sentar e cagar. Foi a hora que o Doc escolheu para entrar em ação. Prontificou-se a resolver a situação. Nada de chamar os médicos marfilianos. Ele tinha um tratamento com base em uma cirurgia leve e sem dor. Recuperação garantida em três dias.
Foram importadas dezenas e dezenas de scalps, porta-agulhas, sondas retais, cateteres etc. O orçamento de consumíveis do Ministério da Saúde foi gasto naquela operação. Enquanto isso, o Chief continuou despachando. A partir da cama, deitado e coberto. Um Taurus calibre 38 debaixo do travesseiro, caso alguém quisesse burlar a vigilância do Rei Sol. Nunca trabalhou tanto. Um baile incessante de cortesãos, ministros e militares desfilava pelo quarto. Todos andavam mancando ou curvados como se padecessem de hemorroidas também. Vontade de dar um chute no rabo desses vagabundos hipócritas!
Daddy olhava para mim e dava risada.
― Tatu, Tatu, meu amigo… Você nunca vai ser ministro… Nunca! Que será de você quando eu morrer? Você viu como meus admiradores tornaram seu o tormento meu? E você continua se arvorando em um Hércules da moral… Incapaz da menor empatia com seu presidente. Que pena, Tatu… Que pena eu sinto de você! – A esse tipo de colocação do presidente, eu aprendi a não responder. Me limitei a bater continência. ― Tatu, você não existe… Uma figura, mesmo.
A operação deu certo. Cortaram as excrescências presidenciais e o corpo de Daddy voltou a estar são e salvo. Hermann ganhou os parabéns da república. E eu fiquei mais aflito ainda.
Na sequência, multiplicaram-se os casos de hemorroidas em Marfilia. Uma epidemia. Se a OMS tivesse um mínimo de competência, teria dado o alerta para a incidência de distúrbios retais nessa parte da África. Na cidade presidencial, havia filas de espera nos consultórios do exército. Todos clamavam por um corte incisivo e decisivo com direito a scalp e anestesia. Como a corte não teme o ridículo (ela vive dele), o Maurice foi o primeiro a ser admitido no bloco hospitalar. Saiu de lá feliz e aliviado. No mesmo dia, apareceu mancando no gabinete, à espera de ser visto pelo presidente enquanto ainda convalescente. Usei todos meus recursos para que ele ficasse de pé por mais de uma hora.
― Tatu… Pelo amor… Estou sangrando… Me deixa entrar para cumprimentar o presidente… Pretextei que o Rei dormia e havia dado ordens expressas de não ser acordado.
― Sua excelência quer descansar. Nem para reportar um levante militar posso acordá-la. No dia seguinte, vi o Maurice entrando no quarto do presidente como um foguete. Estava ofegante.
― Moya, o Moya… Desertou… Passou para a dissidência… Deu entrevista na CNN acusando sua excelência de peculato e abusos aos direitos humanos.
Daddy, visivelmente incomodado (assistia a um jogo chave dos Lakers), congelou a tela do plasma. Tinha se rendido, afinal, às maravilhas da gravação. Estendeu a mão e entregou o copo de café ao Maurice (daqueles de plástico que se usam no Starbucks).
― Escuta bem, Maurice… Tatu… Tatu, você também… Quero que você também escute bem o que vou dizer… O ser humano é ingrato… Muito ingrato… Vive enciumado… Ressentido… Sente-se ofuscado pelo meu sucesso… Pelo renascimento de Marfilia… Não tolera ver os jovens terem êxito usando competência e honestidade… Não tolera a minha probidade moral… Não consegue viver com a mera ideia de que um africano possa ser íntegro e brilhante… O ser humano é ingrato… Sempre soube disso… Moya recebeu tudo de Marfilia… Casa, salário, status… Eu, apesar de saber de sua incúria administrativa, o mandei curtir meses de preguiça em Paris… Tudo pago pela nação… Tive que destituí-lo… Era minha obrigação moral… Marfilia me pediu isso… Eu sou um servidor da pátria! (Precisou gritar essa última palavra.) Destituí o cachorro sarnento, mas fui justo com ele… Eu o instalei em Paris na UNESCO sabendo que não ia fazer nada… Era uma maneira de Marfilia demonstrar que não guarda mágoa de seus filhos… Até os mais indignos entre eles… Vocês dizem que ele me traiu… Que quer me derrubar agora… Não vai… Não vai… (Um sorriso radiante invadiu o rosto do presidente.) Não vai… Não pode… Eu fui pra cama com a esposa dele… Enquanto ele estava conspirando contra mim em Paris, eu beijava e abraçava a senhora Moya… Hein? Quem vai ficar mais bonito na foto, agora? O dissidente corno ou o presidente oriundo do golpe de estado? O exilado ou o patriota? Quando você seduz a mulher do inimigo você acaba com ele… Acaba com ele como homem… Entenderam? Não sei se vocês entendem o que estou dizendo… Ele fica acabado como chefe de família… É castrado simbolicamente… Não pode mais fazer nada… Nem à esposa sabe satisfazer e precisa do presidente para servi-la… Esse tipo de pessoa pretende o poder supremo? Esse homenzinho de palha quer me tirar da presidência? Ah, pelo amor… Pelo amor, queridos amigos… Sejamos sérios.
Conviver com o Daddy é cursar um MBA de política aplicada.
Trecho de “Antes de morrer preciso de uma festa”. Lançamento previsto para agosto de 2017 pela editora Scortecci, de São Paulo. Vendas online (livro físico): Cultura, Martins Fontes e Asabeça. Versão ebook no Kindle.
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