Eles proíbem o uso do álcool e de estupefacientes. Mantem uma estrita separação entre seus membros e a sociedade. Pautam a conduta dos moradores em nome de Deus. Vão de casa a casa distribuído seus princípios morais impressos em formato de livreto. Defendem a autodeterminação do povo, criticam o imperialismo americano, abominam o materialismo, execram o aborto, rejeitam a democracia representativa e reabilitaram o castigo físico em toda sua esplendor. Quem “ofender a honra de mulheres castas pela sedução ou a coerção” receberá 4 dias de tortura a base de golpes e banhos de agua fria…
Eles proíbem o uso do álcool e de estupefacientes. Mantem uma estrita separação entre seus membros e a sociedade. Pautam a conduta dos moradores em nome de Deus. Vão de casa a casa distribuído seus princípios morais impressos em formato de livreto. Defendem a autodeterminação do povo, criticam o imperialismo americano, abominam o materialismo, execram o aborto, rejeitam a democracia representativa e reabilitaram o castigo físico em toda sua esplendor. Quem “ofender a honra de mulheres castas pela sedução ou a coerção” receberá 4 dias de tortura a base de golpes e banhos de agua fria…
Eles vivem (proliferam) em zonas semiáridas, acostumadas a escassez de agua e de autoridade estatal. Apareceram sobre 2010-11 em povoados onde a piedade nunca abundou. Não tiveram dificuldade nenhuma em se “conectar” nos fluxos de contrabando e imigração ilegal que atravessam essas regiões. A sua chegada foi como uma nuvem de grilos que assolam um oásis do Saara que mal consegue sobreviver. Usam youtube e as redes sociais para “pendurar” corpos de vítimas por baixo de pontes transitadas com mensagens que não deixam margem a dúvida: semeamos o terror em nome de Deus e não toleramos dissidência nenhuma.
Ao avista-los, a Vida escasseia e a economia para. Milhares de refugiados pegam estrada rumo aos estados vizinhos. As empresas não podem mais com a extorsão e fecham uma a uma. As padarias baixam as cortinas. Não tem mais bares nem casas noturnas nem restaurantes. O P.I.B despenca. Os pais ficam e mandam as crianças morarem em áreas “liberadas”. De qualquer modo, não tem mais transporte escolar nem creches na maioria dos casos. As cidades outrora alegres e coloridas viram fantasmas. Tristeza e desolação.
Quem são eles? O Estado Islâmico. Al Quaeda. Não. A onde estão? Raqqa, Alepo, Bagdad. Não. Estamos no México e estamos falando dos Caballeros Templarios, uma gangue emergente. Do lado deles, o E.I seria um bando de estagiários, uma manada de aprendizes no hiper-realismo bárbaro.
Os Caballeros Templarios nasceram como uma milícia cidadã mas em poucas semanas se transformaram numa organização criminosa e milenarista. Hoje, dominam boa parte do Estado mexicano do Michoacán. Mandam e desmandam no tráfico de drogas, entre outros negócios ilícitos. Exportam cocaína aos Estados Unidos, importam armamento pesado para exterminar inimigos e amedrontar aos leigos, os mexicanos que têm a infortuna de morar na sua área de atuação.
Os Caballeros Templarios são aliados do famoso El Chapo Guzman, quem conseguiu escapar duas vezes de um presidio federal mexicano, o mesmo quem recebeu homenagem respeitoso por parte do Sean Penn. Estão em conflito com a Familia , o Cartel de Jalisco, o Cartel dos Beltran Leyva, os Zetas, ou seja meio mundo, a nata da nata da bandidagem latino-americana.
Em 2010, uma moradora chamou a polícia mexicana e informou que havia um grupo de bandidos afiliados aos Zetas (arqui-inimigos dos Caballeros) fazendo barulho na esquina. Apesar de ter usado o disque denúncia anônimo, a gangue soube da sua identidade, a matou e a “entregou” despedaçada na frente de casa. A cabeça foi colocada entras pernas, um dedo da mão direita foi posto entre os dentes. A mensagem a sociedade civil foi clara: não há sociedade civil nem aquela coisa chamada cidadania a onde os Caballeros operam.
50 000 vítimas inocentes foram executadas, dilaceradas e queimadas por gangues que irromperam na realidade mexicana desde os anos 2007-2008 (quando o ex-presidente Calderon abriu a caixa de Pandora ao empeçar a guerra contra as drogas). Estamos falando dum pais industrial que faz parte do seleto clube da OCDE, um conjunto duma vintena de nações avançadas como Corei do Sul, França e Canada (Brasil não tem condição de entrar na OCDE pela falta de desenvolvimento industrial).
Um filme de horror. A vida em amplos setores da América Latina virou um filme de horror. Um pesadelo de proporções bíblicas que ofende o dogma confortável que nos ensina a pensar a violência em termos de Direitos Humanos, de Luta de Classes, de inclusão democrática, de proteção das minorias…em suma, o que chamamos de Progresso. É certeza que o grau de severidade do ataque varia de uma pais a outro. As sociedades latinas sempre viveram em temporalidades diferentes: a Venezuela mergulhou no populismo mais crasso enquanto o Brasil assentava a alternância no poder; Cuba vive ainda nos anos 1960 enquanto Chile enxerga um futuro econômico feliz com a Globalização. Por tanto, não os surpreende que a sociedade mexicana esteja agora no ápice da barbárie (uma precursora do que nos aguarda?), que a venezuelana esteja lentamente se afundando no caos (a taxa de homicídios em Caracas foi multiplicada por seis em dez anos), que a argentina pareça se render a uma nova geração de narcos, que a brasileira tivesse inventado “um jeitinho” de fazer parecer a classe política ainda mais “bandida” do que o crime organizado.
Tudo isso se assemelha a uma guerra civil. Pois bem, mas qual é a ideóloga que a anima, qual a Causa? É uma luta despiedada pelo poder. Talvez, mas que significa destruir a sociedade ao querer domina-la? Não faz sentido mandar num campo de ruinas. Ou talvez está errado raciocinar em termos lógicos, de bom senso. É provável que tudo isso tenha a ver com o Diabo, uma manifestação absurda e absoluta do Mal, como o Hitler ou o Pol Pot foram em outras latitudes.
Diante do mal-estar e da confusão que a barbaria causa, é melhor ir por partes. O proposito manifesto das carteis latinos que vemos analisando é dominar o mercado. Chegar no monopólio do transporte da cocaína aos Estados Unidos por exemplo. Pablo Escobar e o Cartel de Medelín no início dos anos 1990 controlavam 80% da cocaína que pisava em solo norte-americano. Hoje, El Chapo Guzman (Cartel de Sinaloa) comanda 50% desse trafico e o próprio F.B.I reconhece que o mexicano abastece todas as cidades americanas da Costa Leste e do Midwest. OK, dominar é um objetivo estratégico que conseguimos entender. Devido à natureza mesmo do negócio, é preciso estabelecer influência sobre amplos territórios. Afinal, droga é um assunto de supply chain: tem que comprar a estrada corrompendo policias, intimidando juízes, remunerando intermediários, alugando galpões, etc. A footprint do narcotráfico é imensa por definição. Como a agricultura, o narcotráfico precisa de espaço, de muito espaço desmatando áreas ociosas e cercando pastos. E para isso é preciso ter feudos, conquista-los e saber defende-los com influência, corrupção e intimidação (aliás não é à toa que o lobby ruralista cultiva grande influência no Brasil e na América Latina desde a época da Colônia).
Dominar para que? Pois é para acumular dinheiro. Eis parece ser o objetivo último: enriquecer-se. Get rich or die trying, cantava o 50 Cent. Baixo essa perspectiva, não há nada estranho a ver El Chapo Guzman ou Fernandinho Beira Mar se envolverem com droga. Nações avançadas e civilizadas fizeram isso bem antes dos capôs latinos. A relação entre entorpecentes e política é um namoro antigo e vergonhoso. Seus filhos cresceram nos interstícios da diplomacia, numa Sodoma e Gomorra contemporânea onde premia a lógica da cobiça. O primeiro império da droga foi com certeza a Grã-Bretanha quem reivindicou o monopólio do tabaco do Novo Mundo. Junto com a França, livrou a Guerra do Opio para obrigar a China a dar passe livre a droga (século 19). Mais perto de nós, a administração Reagan cambaleou ao estourar o escândalo do Iran Gate onde armas e drogas eram vendidos pela C.I.A para custear milícias opostas ao comunismo na Nicarágua (1987).
Então é isso. Drogas em troca de dinheiro e riqueza material. Não é bem assim na verdade. Os narcos não querem parar por aí. O dinheiro não é a finalidade, é apenas um meio, tanto como a violência ou a ideologia. Têm outras motivações que filtram nas suas falas. São claras, para quem se dá a pena de examina-las como elas são: uma declaração de porte político.
Mensagem da Nueva Federación ao povo do Estado de Nuevo Leon (norte do México):
Cidadãos abrem os olhos e parrem de idolatrar quem tracionou sua verdadeira responsabilidade, que radica em vocês, chega de viver enganados por personagens que são beneficiados pela escoria. Queremos limpar e vamos a limpar todo o território, os de gravata e salto alto também…Gente do bem e trabalhadora do Nuevo Leon, nós não vamos a tocar inocentes, entendem que alguém tem que fazer algo para que vocês possam recuperar sua terra.
Atenciosamente, La Nueva Federacion, “ Para Viver Melhor”
Essas ultimas três palavras soam irredutivelmente como um slogan eleitoral: “confia nos narcos para um futuro melhor” (já que as elites tradicionais perderam toda credibilidade).
Mensagem da Familia ao povo do Estado de Michoacán (Oeste do México).
La Familia surge em 2005 diante da incapacidade do nosso governo para outorgar segurança aos cidadãos…somos homens e mulheres dispostos a lutar diante da ineficiência e frouxidão do Estado para erradicar ladrões, violentadores, narcotraficantes e sequestradores.
Pedimos que vocês nos transmitam sua avaliação do nosso serviço a traves dos meios pertinentes (Internet, redes sociais, rádio, televisão, jornais, etc.)…” MELHOR MORRER DE PE E COM A FRENTE ALTA DO QUE VIVER TODA UMA VIDA AJOELHADO E HUMILHADO”
Ambas mensagens foram emitidas em 2010 a traves de redes sociais e blogs alinhados. Não é nada novo, nem nada estritamente mexicano. No final dos anos 1980. Pablo Escobar e o Cartel de Medelín tinham seu próprio jornal (distribuído gratuitamente) onde prometiam não deixar cair a bandeira e intensificar a luta com o intuito de causar assombro no governo colombiano pro-imperialsita e antipatriótico. E muito recentemente, São Paulo foi amedrontada pelos ataques do PCC (2006) ao cujo respeito o líder da fação, o Marcola, teria afirmado: “Nas madrugadas que se sucederam ao fatídico 12 de maio, depredamos agências bancárias do sistema, incendiamos ônibus do sistema e espalhamos nossa doutrina, forçando o sistema a negociar conosco. ”
Tudo está aí. Claro. A doutrina narco navega entre (a) o altruísmo mais ridículo (somos puras vítimas da oligarquia e do sistema corrupto que nos perseguem porque queremos ajudar a sociedade), (b) o patriotismo e o regionalismo (matamos para defender nossa província e lutar contra o imperialismo yankee) e (c) o cinismo mais descarado (os outros bandos sim são criminosos, nós somos diferentes mas se você discordar o matamos).
Por vários aspectos, a palavra dos narcos emula o vocabulário dos guerrilheiros dos anos 50-60 imbuídos de Guevarismo. Antes de ser assassinado em 1993, Pablo Escobar escrevia essas linhas a imprensa colombiana. Não sabemos ao certo se foi por cinismo completo (uma farsa) ou se ele mesmo acreditava sinceramente no que afirmava: “Minha luta vem sendo animada por ideias remotos a Ambição e ao Dinheiro: Família, Liberdade, Vida, Direito de nacionalidade y de pátria, classes marginadas e desprotegidas, Direitos Humanos. Todas as guerras são cruéis e criminais…como quando o governo dos Estados Unidos lançou duas bombas atômicas sobre a população civil (do Japão) ”. Parece ser um manifesto de um movimento marxista revolucionário. Em outros trechos, o Cartel de Medellín, afim ao Pablo Escobar, distribuía panfletos conscientizado a população sobre os riscos de contaminação do meio ambiente, do ar e dos rios. Um pensamento ecologista precursor na nossa região em plenos anos 1980!
Salta aos olhos que estamos frente a um fenômeno de natureza política. Não é toa que o PCC é chamado de maneira corriqueira de partido, e que o lema oficial da facção é Paz, Justiça e Liberdade. Se fosse puro business, falariam de Performance ou de outras bobeiras como Sustentabilidade! Tudo pelo contrario, eles usam termos genuinamente políticos.
Mas, para que usar o linguajar da política? Com certeza, têm algo de inveja dos políticos que roubam e gozam de foro privilegiado (esse foi o teor explicito da mensagem do Marcola a CPI dos bingos). Indo diretamente ao grano, diria que eles querem o Poder. Querem governar. Como definir o Poder? Segundo o filosofo francês Michel Onfray (Argentan, 1959), o poder é o que se exerce sobre o povo. Simples assim. É o que se impõe a mim, a você, a seus filhos e parentes. É isso que o crime organizado procura.
Cabe se interrogar sobre a finalidade dessa corrida ao poder. Qual é o projeto de governo? Qual a visão da sociedade atrelada a essa briga política?
A resposta vem em poucas palavras: Feudalismo 2.0. Os narcos, sejam eles mexicanos, colombianos, venezuelanos ou brasileiros procuram instaurar uma contra-sociedade que ambiciona derrubar todas as conquistas da Modernidade. Trata-se de uma revolução reacionária e milenarista, uma investida contra o Estado de Direito que com duras penas temos edificado, um ataque despiedado contra a Dignidade humana que ainda não disfrutamos por completo.
Primeiro, o sistema econômico: exportar cocaína e traficar gente (imigrantes clandestinos); com o dinheiro acumulado em divisas pretendem importar tudo o luxo e as comodidades do mundo ocidental. Nada é mais desejável para um narco do que um jatinho, um veleiro ou um chuveiro dourado (Pablo Escobar tinha importado o conjunto completo do zoológico de San Diego). Na visão econômica dos narcos, não há indústria nacional nem substituição das importações. É monocultura extensiva focada em estupefacientes e nas poucas indústrias atreladas a essas (imigração ilegal, prostituição, jogos clandestinos, contrabando de espécies em vias de extinção, etc.).
Segundo, o sistema político e sociedade que o sustenta. Os narcos são ultra-capitalistas. Nada de classe media nem de inclusão social. Odeiam o Estado, por isso sempre procuram tirar dele a função assistencialista. Eles custeiam e implantam projetos sociais como fazia a aristocracia inglesa na Primeira Revolução Industrial (1780-1810): dão uma merreca a um imenso proletariado mantido em condições subumanas. Nada mais lógico do que isso para os Senhores Feudais da época pós-moderna. Eles querem o deles e ponto. São opositores férreos ao avanço das classes laboriosas pela boa e simples razão que eles matam os pobres por centenas e a diário. Que ninguém se engane, nada de Robin Hood aqui ou de luta de classes. Os narcos querem formar um anova elite de natureza feudal no pior sentido da palavra, excludente e inculta. Por todos esses motivos, nunca poderemos aceitar a tese que vê neles uma consequência da miséria ou da desigualdade. Eles mesmos são causadores de injustiça social. Na contra-sociedade que nos estão preparando, não há muito espaço para democracia eletiva. Matam alegremente prefeitos e intimidam deputados. Eles não podem entender a diversidade e a pluralidade política porque o seu DNA transmite predação e monopólio. Edificaram imensas fortunas exterminando concorrentes e tomando praças fortes. Isso é o famoso estado de natureza do Thomas Hobbes, o homem é um lobo para o homem. O ordenamento institucional desejado pelos narcos transpira o cheio acre da intimidação. É como se o bullying tivesse virado um modo de governar.
Enquanto a Cultura e Valores, o projeto dos narcos gira entre cinema pornô e futebol. A simultânea invasão de ruas e mentes pela cocaína e o pornô não é coincidência. Tudo parece ter começado nos anos 1970 na mesma esquina e talvez pelo mesmo motivos. Foi em algum lugar de Los Angeles ou Nova Iorque que a heroína foi desbancada pela cocaína e que o pornô virou um vício para a nossa civilização. Não e de estranhar que os narcos reservem um papel ultrarreacionário para as mulheres: ou são putas ou são mortas (as únicas que escapam a essa alternativa são as santas genitoras dos narcos). A maior taxa de feminicido no mundo foi registrada em Ciudad Juarez nos anos 2010-2012. A maior! Morre uma mulher por bala a cada dia (dados de 2011). Ciudad Juarez é a meca da narcocultura e da sociedade do futuro que se está construindo ao redor do tráfico (berço do Cartel de Juarez, aliado do El Chapo Guzman).
Enquanto a futebol, a ninguém escapou que a lógica o esporte rei tem semelhanças estranhas com a economia narco: muito dinheiro para pouquíssimos (Neymar, Messi, Ronaldo) e lavagem de divisas para muitos (quantos clubes europeus estão com processo aberto por fraude fiscal nas transferências de jogadores?).
Estamos diante de um projeto fascista que busca fundar uma sociedade nova com um homem novo. Um fascismo tropical (quem disse que o calor imuniza contra as ideologias extremas?), tingido de oposição ao imperialismo norte-americano e de rejeição da democracia representativa. Hitler queria criar um espaço vital para segurar o futuro da raça ariana, os carteis precisam de uma América feita de governos fantoches e povoada de putas e ladrões. Um dos fundadores do cartel de Medellín, Carlos Lehder (hoje preso nos Estados Unidos) chegou a fundar um partido neonazista colombiano que queria destruir os Estados Unidos pela cocaína (“sociedade decadente”) e de garantir o direito dos colombianos a marijuana. Nenhuma palavra sobre sistema de saúde, infraestrutura ou pesquisa cientifica. O fascismo narco não perde tempo com o bem-estar das massas.
E nós em tudo isso? Nosso papel é calar a boca ou fazer as malas. O roteirista da utopia narco nos reservou o papel da vítima abusada e aniquilada.
Laranja Mecânica (novela do A.Burgess de 1962 adaptada ao cinema em 1971 por S.Kubrick) é uma obra distópica que conta uma noitada de ultraviolência que reúne um grupo de delinquentes (os droogs) comandados por um tal de Alex. A gangue rouba, espanca, tortura e estupra, na rua, em estabelecimentos comerciais e nas próprias residências das vítimas. Usavam armas simples como corrente de bicicleta. As vítimas tinham um papel secundário no mundo deles (na vida): são puros seres passivos que cumprem a função de saciar as pulsões amorais e sádicas dos droogs. Obra de ciência ficção quando saiu, Laranja Mecânica não parece tão remota a nos moradores dos Trópicos. Vivemos em cidades onde o “micro-onda” é uma realidade, onde volta e meia se noticiam arrastões assustadores a condomínios e onde fazer B.O para boa parte da população está fora de cogitação, por medo a represálias.
Nesse filme de terror que nos prepara o Crime Organizado, a sociedade tem o papel da presa. Estamos num sanduiche. Por um lado, um Estado obeso e incompetente mas que internalizou, queiramos ou não, a lógica dos Direitos Humanos. Recusa o castigo físico e pensa em reinserção em lugar de punição. Por outro, o Crime Organizado e os narcos, ultra-eficientes e ágeis e que não tomam compromisso nenhum em prol da sociedade. Mutilam e matam e não se sentem obrigados a respeitar o que Amnesty e a O.N.U falam. No meio, ficamos nós os cidadãos, passivos e indignados. Parece que uma força surda e implacável fez de nós crianças, com diplomas e carteiras de habilitação. Estamos vendidos, nossa segurança está na mão do Estado e de agentes privados que cuidam dos nosso condomínios e estacionamentos. Para ficarmos em forma, temos que ir à academia. Nosso modo de vida faz de nos seres gordos e sem tônus: homenzinhos em suma que não sabem se defender. O autor desse artigo reconhece humildemente que não tem a mínima ideia sobre como se defender numa briga de rua ou salvar a vida dos seus familiares fora fugir e chamar 190. Há algo errado com uma cidadania incapaz de zelar pela sua própria defesa. Qualquer um pode nos subjugar. O Estado vem fazendo isso com imenso êxito, afinal lhe pagamos fortunas a cada ano para que desempenha (muito ineficientemente) suas funções regalianas (segurança, defesa, saúde, educação). Mas, o que acontece quando o Estado se omite ou não consegue mais nos proteger? Entram os droogs como no filme do Kubrick. A história recente da América Latina pode ser vista como uma sucessão de tentativas por parte de droogs ousados (Pablo Escobar, El Chapo, Beira Mar, etc.) de espremer ao máximo as sociedades. Uma Laranja Mecânica tropical que prenuncia um fascismo branco, ultraviolento e ultracapitalista. Branco pela cocaína. Um fascismo branco com pingos vermelhos, um para cada vítima da carniceira.
Quem quiser abraçar a realidade narco, tem que manusear o rewind e o fast forward com maestria, de um pais a outro se pula de um capitulo a outro de uma novela que enfrenta Sociedade, Estado e Crime. Os últimos quarenta anos são uma galeria viva que conta a mesma história baixo diferentes roteiros. A boa notícia é que o happy ending parece ao alcance de alguns. Os colombianos parecem ter chegado na formula mágica para vencer o ataque narco. Resulta fascinante entender a resiliência de uma sociedade que todos achavam perdida dez anos atrás.
No livro que tenho em preparação, “Narcolândia, o projeto revolucionário dos narcos para América Latina” tento responder a perguntas angustiantes como (a) o porquê da desagregação de um pais sob efeito da violência narco, (b) a superioridade simbólica da contra-sociedade que os homólogos do Pablo Escobar procuram erguer nas periferias urbanas, (c) a receita usada aqui ou lá para reconstruir o tecido social e conjurar a utopia de uma nação de traficantes. Espero que “Narcolândia” nunca passe a ser um livro de história, caso contrário teríamos perdido a batalha contra o Mal.
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