Imagine um pais estrangeiro, digamos a Venezuela, apoiar uma rebelião indígena na Amazônia brasileira visando a secessão de um território equivalente ao estado de São Paulo. Imagine líderes locais auxiliados por ONGs estrangeiras clamando que Brasil é um pais opressor e que as forças federais são forças de ocupação. Imagine eles dando entrevista na CNN dizendo que são os habitantes originais dessa terra e que querem preserva-la da cobiça dos especuladores e dos inimigos do meio ambiente. Como seria sua reação? Ficaria feliz ou preocupado?
Acontece algo muito parecido na parte sul do Marrocos, uma região que costuma ser chamada de Saara ocidental porque fica de fato na margem mais ao oeste do grande deserto que se estende do Atlântico ao Oceano Indico.
Faz quarenta anos que guerrilheiros oriundos das tribos locais desafiam a autoridade do Marrocos na região. O Polisario – a guerrilha separatista – ocupa cerca de 10% do Saara ocidental enquanto o resto do território disputado vive sob administração marroquina, as duas partes estão separadas por uma muralha extraordinária que atravessa o deserto sobre 2700 km. O famoso muro sonhado pelo Trump não é novidade nessa parte árida e poeirenta do mundo. Construído entre 1980 e 1987, o “muro das areais” ou “linha de defesa” é uma obra prima de engenharia militar. A muralha é visível do céu, quem viaja de Lisboa a Cidade do Cabo sobrevoa o Saara ocidental e consegue ver uma linha ora reta ora quebrada que rabisca a paisagem monótona do deserto de pedras. Falar de muralha é um abuso de linguagem: são barrancos profundos rodeados de minas antipessoais. A cada 5 km, há postos de observação com homens e equipamentos de detecção que conseguem ver uma jeep chegando a várias milhas.
Desde a finalização do muro, a guerra entre Marrocos e o Polisario entrou em hibernação. Em 1991, foi assinado um cessar-fogo. Os marroquinos mantem 100 000 homens do outro lado da fronteira de fato. Os números dos soldados do Polisario são mais difíceis de estabelecer, são pelo menos 10000 combatentes. Vivem confinados em acampamentos constantemente visitados pela ONU (Tindouf) e costumam viajar livremente dentro do território da Argélia, o pais vizinho que sempre deu apoio a causa do Polisario. É comum encontrar estudantes nascidos nesses acampamentos na Argélia ou nos países comunistas como Cuba e Venezuela. De fato, a causa dos separatistas sempre recebeu boa acolhida nos países do ex-Bloco do Leste e apesar do fim do comunismo os laços com Havana e Caracas nunca sumiram.
Um conflito gelado que custa caro
Escrevo essa matéria como marroquino, não escondo meu viés na hora de lhe expor a verdade histórica. O Marrocos é um velho estado que ocupa o território onde o Atlântico se junta ao Mediterrâneo. Somos o pais da cordilheira verde e majestosa do Atlas (4165m de altitude máxima), do estreito de Gibraltar e das planícies áridas que se estendem até os confins da Mauritânia atual. No passado, nosso Sultão levantava impostos e nomeava xeiques no coração do Mali e até as margens do Rio Senegal. O passado é o passado, povos avançam e recuam, é a dura lei da geopolítica. Mas, ninguém pode negar que três dinastias que governaram meu pais nasceram nesse território que os separatistas querem tirar de nos.
Em 1884, a Espanha começou a instalar postos militares e polos comercias na faixa litoral que cobre as regiões chamadas da Saguia El Hamra (que significa Rio Vermelho em árabe) e do Rio de Oro (o nome é explicito). A ocupação espanhola foi se consolidando e deu lugar a várias batalhas com as tribos locais. De pouco adiantou a colonização espanhola já que nada ou quase nada foi feito para tirar os moradores da miséria e entregar infraestrutura as novas gerações.
As coisas começaram a mudar nos anos 60 quando a comunidade internacional começou a pressionar seriamente o Franco, o presidente ditador da Espanha. E foi necessário esperar o “caudillo” entrar em lenta agonia para que o Marrocos pudesse recuperar a soberania sobre os territórios ocupados. Foi em 1975 quando 300 000 civis marroquinos cruzaram a fronteira sul rumo as províncias sob domínio colonial. Espanha aceitou se retirar por vários motivos, um deles é que as elites do país queriam fechar o quanto antes a página colonial e se concentrar na transição para a democracia jà que Franco estava no leito da morte (e de fato morreu em novembro de 1975).
E na sequência, o Marrocos ganhou um “brinde” na figura de uma guerrilha separatista chamada Polisario que significa Frente Popular de Liberación da Saguia El Hamra y Rio de Oro.
Tem maior felicidade para um colonizador ver sua ex-colônia se libertar para sucumbir imediatamente a uma guerra interna? Tem melhor cenário para vender armamento e abastecimento? De 1975 até o cessar fogo de 1991, Marrocos gastou o que não tinha para comprar helicópteros, caças e taques americanos. E o Polisario por seu lado recebeu toneladas de munição de fabricação russa e centenas de jeeps Toyota, presente amistoso dos regimes da Argélia e da Líbia[1], ambos inimigos férreos do Marrocos.
O conflito está paralisado atualmente, uma vez que nenhuma bala é atirada de um lado para o outro da linha divisória. Porém os gastos permanecem. É preciso manter operacional armamento e infraestrutura sabendo que o deserto corrói metais, estoura pneus e enferruja toda classe de circuito eletrônico. A vida útil de uma tela plasma naquela região não excede os 12 meses. Marrocos reserva 3,5% do PIB ao esforço militar, uma cifra enorme quando se sabe que o Brasil gasta menos de 1,4% . Nem a Colômbia com sua guerra civil intensa passa dos 3.4% (dados do ano 2015).
Milhares de famílias estão separadas, alguns moram do lado marroquino, outros nos acampamentos rebeldes. A missão local da ONU (MINURSO) mantem uma ponte aérea possibilitando encontros familiares. No início, esse esquema era para ser temporário até encontrar caminhos para celebrar um referendo de autodeterminação no Saara ocidental. Acontece que ambas as partes questionam o censo prévio a consulta há vinte anos. Os marroquinos querem a inclusão de todos os moradores (cerca de 500 000) enquanto os rebeldes buscam limitar o corpo eleitoral aos descendentes das tribos originais da região. O esquema transitório virou praxe, e regularmente os voos cruzam o céu do Saara carregando sorrisos, anedotas e lagrimas.
A chave
Do que depende a resolução do conflito? Falta chamar a mesa de negociações Marrocos e Argélia. Esse pais vê com muito receio a possibilidade do Marrocos aproveitar uma enorme área marítima exclusiva que o coloca no coração do Atlântico Norte, uma das zonas mais dinâmicas do mundo, atreladas a Europa e América do Norte. Argélia não suporta ver o Marrocos controlar a estrada asfaltada que conecta o estreito de Gibraltar a Dakar no Senegal e se prolonga até o Golfo da Guiné.
Esses dois vizinhos devem conversar. Faz trinta anos que fecharam a fronteira terrestre, não fazem mais comercio bilateral, pelo menos oficialmente porque o contrabando é uma realidade.
Segurança agora e prosperidade nunca?
Enquanto Marrocos e o Polisario estão ocupados por uma briga antiga, algo importante vem acontecendo no mar. A poucos quilômetros de Laayoune, a capital administrativa da região, passam cargueiros e porta-containers que transitam por uma das maiores rotas marítimas do mundo. Num imenso setor em forma de quadrilátero formado por Laayoune, Tenerife (capital das Canarias), Lisboa e Santa Maria (Açores) passa boa parte do comercio mundial seja por ar como por mar. A saúde dos portos de Santos e Itajai depende diretamente da segurança e da navegabilidade dessa mega-região. Essa geopolítica favorável não é novidade, o que mudou sim é a globalização que aumenta o potencial estratégico dos estreitos e dos corredores.
Washington entendeu a mensagem alta e clara. Faz anos que realiza manobras conjuntas com as tropas marroquinas na beira do Atlântico, justamente na região onde o canal separando África das Canarias é o mais estreito. Em caso de turbulências políticas no Marrocos, aquela região seria o local escolhido por piratas para lançar ataques contra barcos cheios de iphones, carros ou remédios. Além disso, os Americanos não escondem que gostariam de localizar seu comando militar para África no Marrocos, a poucas “quadras” do Saara ocidental disputado.
Espanha também entendeu o recado, mantem faz uma década uma eficiente política de combate a imigração clandestina atuando nas praias e portos dos países emissores. Colocou barcos, aviões e agentes espanhóis nas enseadas de Dakar (Senegal) e Nouadibouh (Mauritânia) E de fato, o número de barcos tentando a travessia ilegal da África até as ilhas Canarias despencou, em 2008 uma centena de “cayucos” entupidos de migrantes saíram da Mauritânia rumo a Canarias (5 dias de navegação) e em 2014 esse número quase zerou.
O problema é que Ocidente somente quer ouvir de segurança e controle migratório, enquanto as populações ribeirinhas da região que vai de Laayoune a Dakar querem falar de desenvolvimento. Quem tem os cordões da bolsa pensa em defesa, quem está com fome procura uma saída. E essa saída tem que ser local e de natureza econômica. A esperança tem que voltar a povoar essa região tão perto da Europa, mas tão longe do seu nível de vida.
Virar sócio em vez de espectador da globalização
Hoje em dia, o Saara ocidental vive na margem da globalização. Da costa, dá para ver a ida e volta dos navios cheios de riquezas, mas nada ou quase chega até esse território. É o que chamo de Maldição dos Estreitos, são autopistas onde transitam barcos e pessoas, com a maior velocidade possível, já que buscam chegar o quanto antes aos polos industriais e aos mercados. Faltam grandes investimentos para convencer um porta-container de 100 000 toneladas que liga Amsterdam ao Rio de Janeiro de parar em Laayoune. Faltaria criar hubs portuários alimentando rotas secundárias atendendo as necessidades dos países vizinhos como Cabo Verde ou Senegal. Mas, o drama dessa região é que tem muito pouca população, são mercados pequenos.
Apesar disso, não perco a esperança em ver a Espanha, o Portugal, o Marrocos, Mauritânia e o Senegal engajarem uma colaboração regional de natureza econômica. Uma área de co-prosperidade que consiga captar um pouco do valor diariamente transportado pelas aguas e os céus da região. Obviamente, Argélia tem que participar, senão ela vai sabotar o processo. Podem começar com o turismo e o transporte aéreo. Os países da África ocidental não recebem visitas porque faltam aerolinhas e aquelas que as atendem são caríssimas. Espanha tem capacidade financeira para bancar uma companhia regional, consegue usar a malha aeroportuária das Canaria como hub, Marrocos tem ótimos pilotos, Argélia produz querosene, e Mauritânia e Senegal tem lindas praias e toneladas de frutos do mar por exportar. Seria um excelente início, um belo projeto que envolveria talentos e boas vontades de várias áreas: militares para o controle aéreo e a meteorologia, civis para o transporte de turistas e de cargas, investidores privados interessados em hotelaria, faculdades e escolas de idiomas.
Sem solidariedade simples e concretas entre as pessoas, não haverá paz. Acredito que a resolução de conflitos é mais derradeira quando envolve relações horizontais, realistas e facilmente entendíveis pelas populações locais. É urgente pensar nisso porque foram quarenta nãos perdidos desde o início das hostilidades!
1 A caída do Kadhafi em 2011 e a subsequente desorganização da Líbia tirou um aliado de peso da linha de apoio do Polisario.
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