É urgente mudar a estratégia de reocupação dos morros cariocas
Such interpretation is too complex and involves too great a mental strain
Rudiger Bilden, Brazil, Laboratory of Civilization, 1929
Iniciada em 2008[1], a chamada pacificação das comunidades carentes do Rio de Janeiro vem sofrendo sérios problemas. Há casos em que o crime volta a mandar em alguns setores, extorquindo os comerciantes e monopolizando a venda de cerveja e de botijões de gás. E, quando tudo sai mais ou menos conforme o planejado, a pacificação chega a um platô e não avança mais. No Complexo do Alemão, emblema da política do secretário Beltrame, a PM teve que “reposicionar” algumas bases para protegê-las do assédio da bandidagem. Em linguagem militar, isso chama “recuo tático”.
E estamos falando mesmo de assuntos militares, de guerra, em suma. “Pacificação” é um termo bem identificado na doutrina militar, ensina-se nas academias de oficiais e se refere a guerra colonial e insurreição. Pacificar significa nada menos do que erradicar os rebeldes e na sequência fazer policiamento ostensivo para mostrar aos civis “quem detém a autoridade”. O assunto apareceu no século passado: houve pacificação no Marrocos dos anos 1920 pelas tropas coloniais francesas, na Argélia dos anos 1950-60 também pela França e no Vietnã nos anos 1960-70 pelos americanos. Exemplos mais recentes incluem El Salvador nos anos 1980 e Colômbia nos anos 2000.
O consenso acadêmico brasileiro recusa veementemente o uso do linguajar e dos métodos militares nos assuntos de segurança pública. Soldado não deve policiar cidades, muito menos perseguir bandidos. Conhecemos o lema e essa linha de pensamento mainstream. Sejamos anticonformistas, nem que seja por um instante, e posicionemos nossa análise no terreno militar mesmo, vamos fundo no paradigma da pacificação para revelar o que deu certo e o que deu errado na reocupação das comunidades cariocas. Soa interessante? De qualquer modo, a desmilitarização da polícia fluminense não está na ordem do dia e, portanto, viveremos com soldados policiando o Rio de Janeiro no curto e médio prazos (seria preciso uma reforma constitucional para “civilizar” a polícia. E não vejo nem consenso entre a população nem vontade na classe política para tamanha façanha).
O que a doutrina militar tem a nos ensinar sobre pacificação?
Trata-se de um tema fascinante e polêmico até nos círculos mais seletos da cúpula militar americana e da OTAN. Faz parte de um corpo de pensamento chamado Counter-Insurgency (ou COIN, militares adoram siglas). O expoente contemporâneo mais simbólico dessa área é David Petraeus, ex-diretor da CIA e ex-comandante das operações americanas no Iraque e no Afeganistão. Em 2006, esse general quatro estrelas escreveu um manual de operação militar destinado a todos os comandantes americanos que intervêm em áreas de guerrilha. O próprio Petraeus reconhece a paternidade do conceito de COIN ao francês David Galula, um militar que atuou na Argélia entre 1956 e 1958. Na época, a Argélia estava fervendo. Região francesa (não era colônia, era parte orgânica do território galo), a Argélia contava com 1 milhão de européens (entre eles um tal de Albert Camus) e nove milhões de musulmans. Em 1954, um movimento nacionalista (FLN[2]) iniciou ações terroristas coordenadas contra os europeus (civis e militares) e começou a chamada Guerre d’Algérie. O FLN conseguiu a independência da Argélia em 1962 e governou o país de maneira autocrática e cleptomaníaca até a década de 1990. Em 1956, o capitão Galula tinha 37 anos e voltava da Ásia, onde morou por uma década. Lá, ele havia observado guerrilhas comunistas e anticoloniais (China, Malásia, Filipinas e Vietnã) e tido uma ideia. Galula se afiliou ao contingente que a França mandou às pressas à Argélia para confrontar uma rebelião tão repentina quanto cruel. Queria aplicar no terreno argelino o que lhe tinha ensinado seu contato direto com guerras insurrecionais na qualidade de adido militar francês em Hong Kong[3].
Nas malas, Galula levou uma teoria inovadora para derrotar as insurreições usando métodos na confluência da política, da propaganda e da ação militar. Galula nunca quis ser administrador civil nem desempenhar cargo político algum. Permanecendo integralmente na esfera militar, ele concebia a missão de pacificação de maneira diferente. Enquanto os generais pediam para ver cadáveres de árabes abatidos, o jovem capitão dava prioridade ao controle da população. Para Galula, o domínio do território é secundário. O que faz sentido mesmo é brigar pelos corações e mentes dos civis. Isso não significa distribuir chocolate e beijos, mas implica parar de gastar homens e recursos capturando rebeldes no deserto. O importante é colocar o grosso da tropa ao lado da população para separá-la dos insurgentes. Parece óbvio, mas é uma verdadeira revolução no pensamento militar, até nos dias de hoje.
Em consequência da opção por primeiro controlar a população, operar em cidades é uma vantagem. A missão fica mais fácil porque o alvo, o civil que pode ajudar a insurgência com comida, remédios, informação e logística, está concentrado em um lugar delimitado.
Antes de irmos mais longe, voltemos à situação da cidade do Rio de Janeiro e vejamos como ela é propícia ao uso do conceito da COIN. Como vem sendo feito o policiamento na Baía de Guanabara? Seguindo a constituição brasileira, operam nas cidades duas forças distintas de policiamento ostensivo. A primeira faz cobertura numa área determinada com homens e viaturas, nela auxilia o poder judicial prendendo procurados e flagrando infrações e delitos. É o famoso Comando de Policiamento de Área (CPA). Existem sete CPAs, ou seja, sete regiões onde a PMERJ faz patrulha e mantém a ordem. O segundo pilar do policiamento ostensivo no Brasil é a força de choque, que se enquadra sob o conceito de policiamento especializado. Basicamente, é uma equipe de reserva (treina e fica em stand-by), que não está atrelada a um território. Tem meios de transporte próprios e rápidos para se deslocar para qualquer CPA. Ela é acionada para conter distúrbios e conduzir operações de alta tecnicidade (resgates marítimos ou na selva, desarme de explosivos), além de executar intervenções perigosas. Em suma, duas forças para a via pública: uma convencional e uma de choque (SP também segue o modelo de CPA e batalhões de apoio[4]).
Como se organiza uma tropa que enfrenta uma guerrilha? Como funcionou o exército francês na Argélia, a US Army no Vietnã? Seguiram o mesmo padrão da PM brasileira: (a) uma tropa territorializada cuida de uma área delimitada conforme a topologia e a concentração de habitantes (os franceses falam em quadrillage, os anglo-saxões, em patrol grid); (b) um comando de choque fica em alerta esperando ser chamado para auxiliar qualquer patrulha de área que precise de ajuda.
Pois bem, vemos que há um paralelismo óbvio entre os dois modelos, o colonial na Argélia do Galula e o fluminense do secretário Beltrame.
Outra coincidência interessante entre os dois casos é a presença de insurgentes em número suficiente para desafiar a força pública, interromper comunicações e decretar toques de recolher. Na Argélia, a insurreição armada começou em 1954[5] e em poucos meses chegou a bloquear estradas e a extorquir tanto muçulmanos quanto europeus. O auge do FLN foi nos anos 1955 e 56. Nos primeiros meses de 1957, os franceses recuperaram a iniciativa por completo e reverteram o curso da guerra contra os nacionalistas. A História reconhece que o exército francês ganhou o conflito por nocaute em 1959-60. O que iria acontecer depois (a Argélia se tornar independente) foi decisão política pura, tomada em Paris pelo general De Gaulle[6].
No Rio de Janeiro, há centenas ou milhares de homens armados desafiando a ordem pública sob a bandeira de movimentos como Comando Vermelho (CV), Amigos dos Amigos (ADA), Terceiro Comando (TC) e Liga da Justiça (milícia). Não têm reivindicação política expressa (mas fazem guerra sim, a julgar pelo uso da palavra comando ou liga). São atores políticos por controlarem de facto a liberdade de movimento, as decisões de compra, os votos e as atitudes de milhões de habitantes (dois ou três milhões de moradores da metrópole, grosso modo). Faz política quem tem a última palavra na distribuição de gás, de cerveja, de luz e no transporte coletivo. Quem cobra impostos dos comércios e sobre a TV a cabo tem o poder. Com razão Mc Max canta “É o poder”, enquanto Mc Pocahontas quer ser a “mulher do poder”. Quem tem uma palavra a dizer sobre os cultos (perseguindo o candomblé e incentivando tal ou tal igreja) tem mais força do que a prefeitura. Para mim, está claro que as gangues fluminenses desempenham um papel político, ou seja, merecem o título de insurgentes. Não são meros bandidos, vão mais longe (lamento profundamente, mas eis a realidade que o estado incompetente vem criando desde o fim da ditadura militar). Um insurgente é alguém que recusa a ordem estabelecida e quer viver fora dela. Torna-se revolucionário quando abraça uma causa que prevê a implantação de um novo sistema para o conjunto da sociedade. No caso do Rio de Janeiro, tudo parece indicar que o estado está sendo desafiado por insurgências diferentes e mais ou menos articuladas entre si. Nossa sorte é que elas são desprovidas de ambição revolucionária (em outras palavras, não têm vontade de tomar o Palácio do Governador).
Com insurgente se faz guerra, mas faz-se também política. Pode haver diálogo e concessões mútuas. Não estou afirmando nada novo, ou será que as obras do PAC na Rocinha e no Alemão (anteriores à pacificação) foram feitas sem a prévia concordância do “poder”? É fato consumado que o crime organizado escolheu os peões da obra do piscinão e do canteiro do teleférico. Lembremos que o PAC é projeto federal e que conta, por consequente, com a força esmagadora da PF e do exército brasileiro. Ainda assim, o estado negociou e fez cogestão com o crime organizado. Façamos dessa desgraça uma boa notícia: no RJ, há uma insurgência armada que têm agenda e perfil psicológico próprios. Cabe então enquadrá-la como insurgência e usar a COIN para encará-la.
É primordial escapar à preguiçosa dialética direita/esquerda que vem esterilizando o debate e castrando quem tem uma visão alternativa. Chega de ver no membro do CV uma vítima da sociedade, da escravidão e do capitalismo! Chega também de rezar que “bandido bom é bandido morto”! É urgente revitalizar o pensamento brasileiro sobre segurança urbana. Galula e seus ensinamentos, inúmeras vezes confrontados com a realidade urbana, nos oferecem uma oportunidade imperdível de superar o impasse da pacificação.
Como na Argélia dos anos 1950, os grupos insurgentes do RJ mantêm o controle da população pelo medo, a cooptação e o clientelismo. No tempo de Galula, o FLN matava civis inocentes por suspeita de serem “X9” (informantes da polícia), mutilava os corpos dos traidores e atraía novos recrutas com o glamour da luta revolucionária, do mesmo jeito como o CV seduz a rapaziada com a promessa de sexo e ostentação. Como bem dizia Galula, os insurgentes sempre têm a vantagem da causa (lutam por algo empolgante: a libertação), enquanto o exército quer manter o status quo. Analogamente, o CV promete enriquecimento rápido, enquanto o Estado entrega desemprego, saúde ruim e educação deficiente.
Ciente dessa discrepância no terreno ideológico, Galula propôs meios de separar fisicamente a população civil dos insurgentes. Como? Parece óbvio, mas ele mandou colocar o quartel dentro das comunidades árabes. Antes, a base ficava em cima de um morro rodeado de mata, a quatro quilômetros da primeira casa (local ideal para observar os arredores e instalar o rádio VHF). Na primeira semana, Galula alugou uma casa de três andares no coração de um vilarejo árabe e lá instalou seu PC. Avisou aos habitantes que não hesitaria nem por um instante antes de revidar qualquer ataque do FLN, “a UPP dos franceses”. De fato, o FLN lançou granadas nos primeiros dias e Galula revidou na hora, causando pavor nos moradores. Sendo um ator político, o FLN entendeu rapidamente que não podia arriscar perder o apoio dos civis e parou de atacar. Afinal, eles o abasteciam com comida, remédios e inteligência. Mudou de estratégia e começou a assediar as patrulhas francesas nos caminhos rurais. Então, Galula obrigou os moradores a podarem as árvores que delimitavam as estradas das fazendas (trabalho pago). No curso dessa operação, Galula e seus homens de confiança isolavam os moradores um por um e pediam informação sobre quem era quem no vilarejo. De fato, o FLN tinha colocado um ou dois homens para fiscalizar a conduta dos árabes e denunciar os traidores da causa nacionalista. A prioridade do Galula foi nítida: identificar e expulsar esses agentes do FLN, etapa primordial antes de qualquer evolução da opinião pública na comunidade.
Veem semelhanças com a situação nos morros do RJ? Of course! Começando pelos líderes comunitários, os olheiros do crime organizado estão em todos os cantos. A UPP pode entrar, o governador pode desfilar na Globo, mas eles ficam, disfarçados de trabalhadores ou mães solteiras. Quem, em seu perfeito juízo, vai oferecer um copo de água para a UPP enquanto os fiscais do CV estiverem na quebrada?
Galula parte da premissa de que, em uma cidade ou comunidade qualquer, 10% da população está visceralmente contra a ordem estabelecida. Não adianta tentar convencê-la a mudar de lado, essa parcela vai sempre apoiar os insurgentes. Esse segmento deve ser identificado, intimidado e, se for necessário, expulso do território (por um período limitado ou para sempre[7]). Há outros 10% que torcem sinceramente pelo sucesso do exército, mas têm medo de represálias. Não se manifestam porque também não sabem se a ocupação vai “pegar” ou será mais uma megaoperação efêmera. O resto, imensos 80%, oscila entre a neutralidade e a hostilidade passiva. São as pessoas comuns, que prestam atenção e não querem encrenca. Observam os desdobramentos dos fatos e ficam na expectativa (Galula dizia sitting over the fence). Não temos que culpá-los por nada: eles têm mais medo dos insurgentes do que do estado. O CV brasileiro, como o FLN argelino, queima e mutila, enquanto a UPP é obrigada (em teoria) a seguir o código penal e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Nós, que vivemos atrás das confortáveis grades dos condomínios e sob a proteção da Haganá, devemos nos colocar no lugar de quem vive sob a ameaça do micro-ondas. Galula sabia da assimetria dos métodos que existe em uma guerra insurrecional, por isso expulsava os olheiros do FLN antes de qualquer coisa.
Transpondo esse paradigma para os morros cariocas, chegamos à conclusão de que a polícia pacificadora tem a missão crítica de converter os 80%, atentistas e medrosos. Sem o apoio ativo dos que esperam para ver, ou pelo menos de sua benevolência neutra, os traficantes terão sempre onde esconder armas, drogas e combatentes. Outra missão dos policiais é ajudar os 10% “do bem” a ter um papel mais ativo na vida da comunidade, tomando o controle de quadras esportivas, de sindicatos de moradores etc. Essa minoria positiva precisa de garantias: ela quer a proteção da força de pacificação e a promessa crível de que o estado NUNCA vai mudar de ideia e sair da comunidade.
O interessante com Galula é tanto o pioneirismo de seu pensamento quanto a excelência de sua execução. Era um oficial completo: gostava da teoria e da prática. Passou dias no jipe e em cima de um burro acompanhando os trabalhos de pacificação (agindo assim, assumiu riscos enormes, tanto que os dois oficiais que o sucederam no posto foram mortos em emboscadas do FLN). A estratégia deu certo, foi um sucesso fenomenal: em 1959-60, a França contava com mais de 150 mil voluntários árabes (os famosos harkis). Receberam armamento, treinamento e cuidavam eles mesmos da segurança de bairros, rodovias e vales. Eram autênticos voluntários que aderiram à causa da Algérie française, parte dos 10% da população prestes a se expor para defender a ordem.
Galula deixou um programa de treze pontos para pacificar uma zona de insurreição. Na situação que ele enfrentava na Argélia dos anos 1950, uma área (um sous-secteur) significava cinco por oito quilômetros, grosso modo. Nessa superfície, cabiam três ou quatro vilarejos árabes e uns 150 soldados franceses. Dá para entender por que a França colocou 500 mil soldados para cobrir a Argélia inteira seguindo o padrão de Galula, enquanto os rebeldes contavam com menos de dez mil homens. A sorte da PM carioca é que o Alemão e a Rocinha não passam de dois subsetores da Argélia francesa.
Seria fastidioso detalhar aqui todos os pontos do programa de pacificação de Galula. Diria simplesmente que os primeiros dependem totalmente dos militares: buscar e expulsar os insurgentes, associar os moradores ao patrulhamento dos bairros, fomentar rapidamente serviços básicos como irrigação, saneamento, escolas (usando os recursos financeiros militares para evitar a burocracia civil). Os últimos pontos dependem plenamente das autoridades políticas: organizar eleições locais, incluir as novas lideranças oriundas do processo eleitoral na vida da região e do país, providenciar a saída das tropas de choque e instalar policiamento convencional no local.
Olhando para a situação das comunidades reocupadas, salta aos olhos que estamos ainda na etapa número 1 do programa de Galula! A PM liquidou os bandidos via prisões, baixas ou simples expulsão do território (todos nos lembramos da fuga cinematográfica de dezenas de insurgentes do Alemão rumo a morros vizinhos). Mas a PM parou por aí. Não houve etapas 2 ou 3, muito menos 12 ou 13. Como o próprio Galula anuncia em seu livro de memórias sobre a Argélia: se o exército se limitar a capturar rebeldes e descuidar da população, a desordem voltará, invariavelmente. No Rio de Janeiro, os bandidos se infiltraram de novo nos morros porque aqueles 80% da população que esperam para ver não se mexeram para expulsá-los nem denunciá-los. O desafio do secretário Beltrame (e do Rio de Janeiro como um todo) é achar uma maneira eficiente e humana de converter a maioria silenciosa.
O que a teoria militar tem a nos dizer sobre a batalha pela maioria silenciosa?
Galula nos anos 1960 e Petraeus hoje em dia destacam pontos chaves que o governo tem que reunir antes de começar a pacificação.
Contar com um comando único na área de ocupação. Um chefe único para civis e militares. Um responsável único para segurança, saúde, educação, coleta do lixo, transporte escolar etc.
Preparar a tropa para o conceito de pacificação quanto ao respeito à dignidade da população civil e ao profissionalismo (nada de roubar celulares ou extorquir camelôs). Se for necessário, “limpar” a tropa, praças e comandos, para que suba no morro somente quem tiver preparo e adesão à teoria da COIN. Galula gastou várias semanas reeducando sua equipe para inculcar a cultura da pacificação. Ele odiava os “guerreiros”, que mediam o sucesso pelo número de rebeldes abatidos[8]. Também desapreciava os soldados ladrões que aproveitavam arrombamentos de casas particulares para roubar dinheiro ou relógio. Com ele, não tinha recurso: quem fosse pego roubando civil ia para a corte marcial.
Utilizar os métodos modernos de propaganda para literalmente propagar as boas ações da tropa pacificadora. Tem que falar, se não toda a verdade, ao menos a parte dela que pode ser comprovada pela população. Por exemplo: “Ontem, foram dados tiros contra a base comunitária X e nós revidamos. Não prendemos ninguém até o momento, mas a distribuição de botijões de gás não foi interrompida, nem a circulação das vans”. A mensagem tem que ser verossímil e ligada ao dia a dia da população alvo. Há também mensagens destinadas aos insurgentes. No caso, Galula engajava as mulheres árabes e aconselhava recorrer também às crianças. Reclamava que a França só cuidava dos homens árabes e descuidava das “minorias perseguidas”. Que visão pioneira! Nós, em 2016, ainda acreditamos em operação com blindados e toucas ninjas! A inteligência parece ter desertado do debate brasileiro sobre a pacificação. Os colombianos vêm aplicando um recurso interessante: mandam as mulheres dos guerrilheiros incitarem os homens a depositar as armas. Elas têm o que o estado perdeu faz tempo: credibilidade. Houve em Pereira (a cidade mais letal do país) uma campanha pública que incentivava as mulheres a fazerem uma greve de sexo até o namorado devolver a arma (piernas cruzadas).
Desenhar uma estratégia de longo prazo. A pacificação consegue resultados concretos em questão de 24 meses (redução de índices de mortes e confrontos), mas é dada por terminada depois de sete anos, mais ou menos. Tudo depende do projeto do governo para a área pacificada. A palavra “estratégia” virou commodity hoje em dia, é usada à toa. No conceito da COIN, estratégia é o que vamos fazer com o Alemão ou a Rocinha depois que o BOPE sair. Vai ser um bairro dormitório? Uma reserva de mão de obra barata? Uma área de serviços, de turismo, um distrito industrial… Como vai ser administrado? Terá uma prefeitura para si ou será um bairro afiliado a uma mesorregião (a Baixada, a Tijuca, a Zona Oeste)? Quais elites vão lotar os cargos locais e determinar os rumos da vida comunitária? Serão as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, moradores novos oriundos de outras cidades etc. Desenhar uma estratégia é tudo isso e ainda mais. A estratégia não pode ser considerar a Rocinha como uma extensão humilde do Leblon. Seria tão absurdo como enxergar a Faixa de Gaza como a vertente pobre da vizinha cidade judia de Ashkelon! Estamos falando de dois mundos diferentes. A Rocinha, o Alemão ou a Maré são contrassociedades de fato, com sua própria justiça, seu sistema de valores, sua cultura da ostentação, sua música, suas igrejas, sua peculiar maneira de entender o papel do mérito e da sorte na vida, seu jeito particular de ver na mulher ora a mãe sofrida, ora a novinha erotizada etc. Ao longo dos anos, a ilegalidade (filha bastarda de um estado incompetente e cínico) forjou uma verdadeira contracultura nas favelas cariocas. Em suma, o governo não pode torcer para que a UPP dê certo. Não é suficiente. Isso não é estratégia, é amadorismo. Galula dizia que a boa sorte nunca substitui a política: relying on luck does not constitute a policy.
Gastar dinheiro cash com o mínimo de burocracia possível. Petraeus, quando voltou do primeiro turno no Iraque, fez debriefing com o secretário de Defesa da época, Donald Rumsfeld. Disse-lhe que a munição da pacificação chama money! Tem que ser dinheiro cash, sem burocracia nem licitação. Galula dizia que o principal inimigo da pacificação na Argélia era a burocracia civil francesa (chamava-a de red tape). Os administradores civis não liberavam os fundos para consertar os aquedutos ou “molhar a mão” do líder comunitário que apoiava a ocupação. O próprio Petraeus confessa ter se apoderado no Iraque, junto com outros comandantes americanos, de 800 milhões de dólares provenientes da fortuna pessoal de Saddam Hussein. Com esse dinheiro em mãos, a força de pacificação reconstruiu a universidade de Mossul, reestabeleceu a luz e os semáforos, reabriu delegacias, reabilitou postos de controle fronteiriço etc.
Fica claro que o aporte teórico da Counter-Insurgency, devidamente “tropicalizado” ao ecossistema carioca, ajudaria bastante a força pública. É urgente mandar policiais e políticos estudarem juntos os princípios da COIN nos Estados Unidos ou na França. Não há problema em corrigir a metodologia no meio do caminho. Temos que fazer tudo para evitar a retirada (ainda provável) do poder público das zonas ocupadas. Nesse caso, a maioria passiva dos 80% nunca cogitaria ajudar a polícia no futuro. E os 10% que apoiaram a pacificação seriam expulsos de suas casas pela ameaça de retaliação do tráfico. Em suma, um desastre completo para a sociedade.
Com certeza, existem figuras proeminentes da segurança pública fluminense prestes a mudar de metodologia. Vislumbram sem margem de dúvida umas sugestões delineadas pela COIN. Porém, não fazem nada. Têm medo de prejudicar a carreira. É precisa muita coragem para quebrar o consenso que emana da Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP). É difícil ir contra uma sociedade que quer ver o bandido executado. Infelizmente, na maioria das vezes, o bom senso não prevalece. A segurança pública fluminense não precisa de nenhum capitão Nascimento, que pinta o rosto de negro para torturar incógnito. Não! O RJ precisa de um Galula: inteligente, corajoso e “mão na massa”.
Se o Brasil fosse um país normal, isso seria a missão predileta de um ex-presidente com bom capital de prestígio. Que pena, FHC está ocupado com outras coisas e Lula prefere “articular” e apoiar empreiteiras.
Por vários aspectos, a história do Galula é uma tragédia. Afinal, foi derrotado pela burocracia. O Estado Maior o mandou ocupar uma gaveta dourada em Paris em 1958. Pouco depois, a França deu uma reviravolta e concedeu independência à Argélia. Abandonou os 10% que a ajudaram. Os harkis não foram autorizados a subir nos barcos que levaram os europeus a Marseille (um número mínimo foi capaz de embarcar pela solidariedade de soldados que ignoraram as ordens). Os primeiros meses da independência argelina foram uma época de massacres e famílias destruídas, o FLN passou os harkis e suas famílias na espada. Galula, como dezenas de oficias franceses, adoeceram de raiva e vergonha. Alguns entraram em depressão, outros viraram mercenários na África, outros conspiraram contra De Gaulle, outros fundaram movimentos de extrema-direita (como o ultraconhecido Front National do Jean-Marie Le Pen).
David Galula fez as malas rumo à Califórnia. Foi acolhido de braços abertos pela comunidade militar americana. Deu aula em Santa Monica e em Harvard. Lá, conheceu um tal de Henry Kissinger, professor de ciências políticas, futuro conselheiro de Kennedy e secretário de Estado de Nixon. Os filhos de Kissinger e de Galula jogavam beisebol aos domingos. Os anos seguintes da vida do francês não interessam muito à presente matéria, acrescento somente que Galula morreu prematuramente de câncer em 1967, aos 48 anos. Deixou uma viúva, um filho e três livros: dois textos sobre COIN e uma história de amor na Hong Kong dos anos 1950. Sobretudo, para nós que nos interessamos pela pacificação, Galula deu a “boa nova”. Um evangelho laico com teoria e prática. Um manual completo para ganhar a guerra contra a insurreição, estabelecer o império da lei e fazer recuar a barbárie. É possível sim pacificar as comunidades cariocas de forma definitiva, humana e ética.
Galula foi um perdedor que triunfou depois de morto. Suas ideias foram redescobertas pelos militares americanos nos anos 2000. Livros foram escritos a respeito na sequência das guerras do Iraque e Afeganistão. Outro fracassado que triunfou, o Rudiger Bilden, o alemão que “anteviu” a tese de Giberto Freyre sobre a miscigenação racial brasileira, alertava contra a preguiça que impede a troca de paradigmas. Basta não cairmos nessa armadilha e sairmos da zona de conforto.
Driss Ghali – fevereiro de 2016.
Para ir além:
Galula, David. The Pacification of Algeria 1956-1958. Santa Monica RAND Corporation, 1963.
Galula, David. Counterinsurgency Warfare: Theory and Practice. Praeger, 2006.
- Petraeus, David and F. Amos, James. U.S. Army U.S. Marine Corps Counterinsurgency Field Manual. Signalman Publishing, 2009.
[1] A primeira UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) foi implantada em 2008 no Morro Santa Marta. Seguiu para a Cidade de Deus em 2009. No início de 2016, eram 38 UPPs abertas em mais de 230 comunidades. Fonte: site comunicação social da PMERJ. <www.upprj.com>, consultado em fevereiro de 2016.
[2] Front de Libération Nationale.
[3] Galula nasceu na vizinha Tunísia e cresceu no Marrocos, onde fez o ensino secundário. Com certeza, isso explica em parte sua preferência por operar no conflito argelino.
[7] Galula recusava a tortura. Usou métodos agressivos, sim, mas advogava que se desse tratamento humano aos presos. Incentivava visitas de familiares às prisões militares para que as esposas entendessem (e falassem no vilarejo) que a França é um país civilizado e digno de confiança.
[8] “To confine soldiers to purely military functions while urgent and vital tasks have to be done, and nobody else is available to undertake them, would be senseless. The soldier must then be prepared to become a propagandist, a social worker, a civil engineer, a schoolteacher, a nurse, a boy scout. But only for as long as he cannot be replaced, for it is better to entrust civilian tasks to civilians.” David Galula, Counterinsurgency Warfare: Theory and Practice.
Leave a Comment