O que leva um simples contencioso diplomático a se transformar no motivo da deportação de 500 000 pessoas em menos de um mês? No final do ano de 1975, pouco antes do Natal, as autoridades argelinas organizaram uma verdadeira caça ao cidadão marroquino nos quatro cantos do país. A polícia prendeu as pessoas em casa, com a roupa que levavam no corpo e as mandou diretamente para o Marrocos. Casas, carros, diplomas, pensões, contas em banco, tudo foi abandonado na hora. Fortunas inteiras trocaram de dono em um dia. Os deportados – simples trabalhadores ou autônomos na maioria dos casos – tiveram que recomeçar do zero no Marrocos, um país que mal conheciam. De fato, muitos nasceram na Argélia de p pais imigrantes que fugiram da miséria das serras do Rif (norte do Marrocos). Buscaram uma vida um pouco melhor nas planícies ricas do oeste argelino. Acabaram casando e criando seus filhos na Argélia. No início dos anos 1970, os marroquinos faziam de tudo: estivadores no porto de Oran, pedreiros, trabalhadores, jornaleiros no campo etc.
Várias famílias se dispersaram para sempre nesses dias terríveis onde os direitos humanos eram a última preocupação de um presidente-ditador, Houari Boumediene, preocupado em se vingar.[1] A ira do tirano era dirigida contra o Rei do Marrocos, Hassan II. Este tinha acabado de anexar o Saara Ocidental, um território do tamanho da Itália e que sempre foi sob soberania marroquina. Desde 1912, o Saara vinha sendo administrado pela Espanha que nunca quis devolvê-lo ao Marrocos apesar da onda de descolonizações dos anos 1960. Em 6 de novembro de 1975, Hassan II lançou uma marcha p pacífica em direção aos territórios ocupados. 300 000 civis avançaram sem armas sobre a barreira de separação e acabaram tomando o controle da cidade de Laayoune, a capital administrativa da colônia espanhola. O governo espanhol aceitou abrir mão da sua colônia para evitar um banho de sangue e por pragmatismo: naqueles dias o ditador Franco agonizava e o regime tinha que se preparar para uma inédita transição política.
Houari Boumediene, quem em teoria não tinha nada a ver com o assunto, entrou em uma crise de raiva. Esses marroquinos iam estender sua fachada marítima no Atlântico! Iam poder usufruir os recursos da pesca e do subsolo! Impossível! Era preciso castigá-los. O primeiro passo foi a deportação massiva de 45 000 famílias marroquinas instaladas na Argélia. O segundo foi mandar um apoio incondicional a uma pequena guerrilha nascente chamada Frente POLISARIO. Os insurgentes pretendiam tirar os marroquinos a qualquer custo do Saara. O conflito continua – embora gelado – até o dia de hoje.
No fundo, pouco importa quem da Argélia ou do Marrocos tinha razão. Nada justifica destruir vidas humanas por uma briga diplomática. A “birra” entre os dois países desembocou em catástrofe humanitária.
A polícia chegou nas creches e escolas para “prender” os filhos e filhas de marroquinos. “Quem é marroquino aqui levanta a mão!”. As crianças, inocentes, não desconfiaram e se entregaram com orgulho. Foram levadas em ônibus para a fronteira marroquina situada a 200 km do local da blitz (as vezes bem mais). Foram literalmente “despejadas” em um país estrangeiro onde nunca tinham pisado.
Apavoradas, as famílias acataram as ordens da polícia argelina que chegou as suas casas exigindo sua saída imediata. “O quanto mais rápido isso acontece, mais cedo irão encontrar seus filhos, é questão de horas!” Em alguns casos, a separação durou anos porque crianças foram “perdidas” na máquina burocrática e passaram um longo período em instituições de caridade marroquinas esperando um parente aparecer. Outras simplesmente sumiram.
Ouvi as histórias dos filhos e netos de deportados. Tinham oito, dez ou doze anos na época do grande desterro. Ficaram calados por 30 décadas como seus parentes. Sobraram motivos para se fazer esquecer: tristeza, depressão, vergonha diante dos casos de estupro e também falta de recursos econômicos e intelectuais (muitos refugiados não sabiam ler e escrever).
Em 2005, resolveram falar. Mustafa, Mohamed, Miloud e tantos outros se juntaram para fundar uma associação em defesa da causa dos deportados do ano 1975. A ONU aceitou ouvi-los e emitiu recomendação destinadas ao governo argelino pedindo investigação oficial e reparações econômicas. Mas nenhum avanço aconteceu desde a manifestação solene da ONU (em 2010 e 2013).
Reuni aqui alguns trechos marcantes dos dramas vividos por Mustafa, Mohamed e Miloud. Tomei liberdades para acrescentar ou calar detalhes, por tanto essa obra é um reflexo fiel, porem levemente ajustado, da tragédia dos expulsados. Há tantas outras histórias por contar, cada uma mais emocionante do que a outra.
[1] Houari Boumediene (1932-1978) chegou ao poder por meio de um golpe de Estado em junho 1965. Manteve o seu antecessor em prisão secreta durante 15 anos. Boumediene era socialista mas promoveu também a vertente árabe e muçulmana da identidade argelina.
Invasão de domicilio (Mustafa)
Era uma tarde fria e cinza de dezembro. Tinha acabado de voltar da escola. Depositei religiosamente minha mochila azul e branca no corredor da nossa casa e fui sentar na mesa para comer a merenda que minha mãe costumava preparar todo dia no mesmo horário. Nunca esquecerei aquela tarde, uma luz branca e salgada vinha do mar mediterrâneo cujas águas lambiam as rochas que delimitavam naturalmente o terreno da nossa casa. Nos fundos tínhamos um pinheiro grande e uma horta onde meu pai cismava em plantar tomate: nunca deu certo, o salitre acabava com tudo, mas ele não se rendia, queria nos mostrar que era um homem completo capaz de criar uma família, sobreviver a uma guerra e ainda por cima cultivar tomates. Esse último quesito foi seu único fracasso. Eu tinha 10 anos e meu pai era tudo para mim, não tinha defeitos.
Chegaram pouco antes das cinco da tarde. Eles, os policiais vestidos à paisana. Ternos cinzas e gravatas pretas. Camisas aparentemente brancas mas amareladas na região do colarinho. Bateram no portão sem cerimônia. “Cadê seu pai moleque? É a polícia! E essa cara de bobo para quê? Vai marroquino! Chama seu pai vagabundo! Vai logo! Quer ver seu pai apanhar na sua frente?”. Fui correndo buscar meu pai. Lia o jornal na varanda que dava para o mar, uma xícara de café frio do lado. Resquícios de fumaça de cigarro tingiam o ar que parecia uma bolha prestes a explodir. Ofegante, fiquei lá plantado, fitando meu pai, seu ar calmo e o destempero do Mediterrâneo. Não deu tempo de falar nada, os policiais já nos tinham cercado. Senti uma grande culpa porque tinha faltado na missão mais importante da minha vida: avisar meu pai do perigo iminente.
“Levanta marroquino! E manda sua esposa e os marmanjos pegar os passaportes. Vocês vão viajar a noite. Férias prolongadas. Vão voltar para sua terra desgraçada. Seu rei precisa de vocês. Chega de sugar o sangue da republica argelina!”
Meu pai se ergueu. Rosto inchado e vermelho pela raiva. Meu pai era alto, branco de cabelo moreno e bem claro. Virou-se e apontou o dedo para o mar. “Quando você ainda tinha cocô nas cuecas, eu ia e vinha nesse mar e por pouco não me afoguei nele. Tomei duas balas na perna para que você s fosse libre livre, fosse a escola e passasse em um concurso público. Então não chame meus filhos de marmanjos!”.
Os vasinhos do rosto se dilatavam, alternavam entre o verde e o roxo. Uma explosão interna acontecia dentro daquele homem. Heróico, lutava contra si mesmo para que nenhum estilhaço atingisse a própria família.
“Olha, disse um rapaz que parecia ser o mais velho, todos nos sabemos quem você é. Ajudou a tirar os franceses daqui durante a guerra de liberação. Certo? Você foi militar, comandou e foi comandado. Sabe bem como é. Não é culpa nossa. Nós somente aplicamos as ordens. Então vamos manter isso dentro da civilidade. Peguem suas coisas, o mínimo possível, nada de malas nem bagagens. Documentos, passaportes, escrituras, tudo que possa provar sua profissão, sua identidade etc. Ah! Ia esquecer! Talões de cheques, dinheiro, joias, vocês vão precisar deles para custear a viagem”.
Meu pai sentou. Desabou. Olhou para mim e viu em mim pavor e horror. Ergueu as costas e me lançou um sorriso. Tentou.
Seus lábios pretendiam passar tranquilidade, somente conseguiram compartir desespero misturado com raiva. Um arco nervoso corria pelo resto daquele homem. Em um instante, ganhou rugas e um semblante bizarro. Como perturbado. Guardou para sempre esse aspecto de homem fulminado, deformado pela intensidade da carga recebida. Vinte anos de vida, de luta, de porrada se dissolviam.
Entardecia devagar. No Mediterrâneo, o dia resiste um tempão antes de desistir, diferente do que acontece nos Trópicos. A noite instala-se a duras penas sobre tudo no verão e na Argélia a temporada quente corre de abril até setembro.
O mar mugia a poucos metros da gente, os pássaros atordoados pelo calor cantavam e o pinheiro marcava presença soltando uma fragrância metade tóxica, metade mágica que afasta plantas concorrentes e bichos inoportunos.
“ Beleza senhores! Sua vontade será feita”.
Meu pai tomou o controle das operações. Liderou a tropa que veio nos despejar. “ Halima, abre o cofre e pega os passaportes das crianças, não esqueça o seu. Pegue uma malinha com as coisinhas do neném”. Éramos seis irmãos. Minha mãe queria uma filha e engravidou seis vezes para parir macho depois de macho. Resignou-se, na nossa cultura a resignação ajuda a ser feliz. O bebe tinha apenas 10 meses, meu irmão Abdala, todos os chamamos de Abdu.
Minha mãe encarava o marido com revolta. Buscava explicações, resistência, um plano, algo. Tudo menos o abandono. Íamos deixar uma vida inteira para atrás. A segurança de uma casa e o conforto de uma pensão de ex-comandante do exercito de liberação. Aqui em Stidia, meu pai era respeitado por ser um estrangeiro que largou tudo para abraçar a causa de um povo alheio. Veio primeiro a Oran, infiltrado pela guerrilha no auge da guerra entre argelinos e franceses. Aos poucos, virou comandante de batalhão e deu mostras indubitáveis de lealdade aos argelinos. Em compensação e depois da independência, recebeu uma indenização que custeou a compra da casa. Quatro quartos com jardim no melhor bairro de Stidia, uma estação balneária perto do complexo petrolífero de Oran onde meu pai cuidava da logística.
– Mimoune, você não tem noção do que está me pedindo…
– Disse que vamos embora agora. Então vamos embora. Pega as coisas do neném logo e não perca mais tempo. Outra vida nos espera no Marrocos. Hoje é um dia feliz: vamos voltar a pátria amada e deixar Argélia para trás!
Do que aconteceu depois, não lembro bem. Eu tinha oito anos. Oito anos é muito cedo para entender de política e de violência. Aquela situação me impressionou bastante. Minha mãe me obrigou a levar minha mochila com os livros e os cadernos da escola. Quando chegamos ao Marrocos no dia seguinte, o policial olhou para mim e disse: “menino! De que adianta trazer essa parafernália de livros argelinos? Aqui a grade é diferente!”. Porém, eu sei no fundo de minha alma que essa mochila e tudo que ela representava me incentivou a virar o que sou hoje. Depois da deportação, recomeçamos tudo do zero no Marrocos. Eu estudei e me dediquei a provar a todos que não sou somente uma vítima, um pobre migrante coitado que foi expulso da Argélia. Minha maior alegria foi ver meu pai chorar na minha formatura na faculdade de Direito. Morreu no ano seguinte. Sei que ele morreu feliz.
A Justiça (Mohammed)
Descemos do camburão meio tontos. Anoitecia em Oran. Não sabia ao certo onde estávamos. Tinha dez anos e não frequentava as delegacias. “Vai! Vai! Avança marroquino!”. O policial nos empurrava para dentro como se fôssemos gado.
Dentro, separaram os homens das mulheres. Devido a minha idade, fiquei com minha mãe. Uma longa noite nos esperava. Mas primeiro o horror. Homens armados e fardados nos juntaram em um quarto sem janelas. Mulheres, bebês e crianças. Choros e soluços. E aquele cheiro horrível dos panos sujos. Até o dia de hoje me acompanha a lembrança desse cheiro de cocô com suor. Houve uma época em que não conseguia olhar para um bebê sem pensar no inferno daquela delegacia. Com a arma bem aparente na cintura, um policial a paisana passou de mulher em mulher. As aliviou das joias, dos brincos e das notas de dinheiro. Mais choros e protestos.
“Chegaram na Argélia sem um centavo, certo? Nada mais normal do que se despedir da gente peladas e sem um centavo.”
Agua gelada (Miloud)
Passei a noite em uma delegacia da periferia de Oran. Tinha pouquíssimo espaço disponível. A cela estava abarrotada de gente. Foi prevista para dez presos, digamos que éramos uns quarenta. Ninguém podia sentar. Sobre cada beliche, tinha cinco ou seis homens de pé. Não sei como a gente conseguiu passar uma noite inteira nessas condições. Havia pessoas doentes e idosos. Precisavam sentar. Ai a gente inovou! Bolamos um esquema onde conseguíamos criar duas vagas sentadas no centro do cubículo. Em troca, nos espremíamos ainda mais. Os afortunados que podiam sentar tinham direito a um período de graça de trinta minutos. Logo, levantávamos e liberávamos espaço para outro coitado. Eu tinha doze anos na época, parecia quatorze ou quinze. Não tinha chance nenhuma de sentar.
No meio da noite, os algozes descobriram o estratagema. Começaram a derramar baldes de água gelada por debaixo da porta. Estávamos em dezembro e a temperatura exterior rondava os 5 graus centígrados. Cúmulo do cinismo e covardia!
Lost in translation (contada por Mustafa)
Prenderam Mourad dia 18 de dezembro 1975 no caminho do trabalho. Recebeu chutes em diversas partes do corpo durante o traslado em caminhão militar. Chegou no primeiro centro de detenção com cortes no rosto. Tinha mais medo do que dor. Desorientação completa.
Em sua casa, uma mulher apavorada e duas filhas o esperavam. Ouviram falar da grande blitz contra os marroquinos. Fazia dias que a caça tinha começado, mas fazer o que? Quem não fez nada errado não entende o perigo iminente. Acredita que está do lado certo e se engana ao acreditar que pagar as contas em dia e respeitar a Lei lhe garante uma vida pacata.
A polícia chegou no inicio da noite do dia 18. “Mas eu não posso deixar a casa sem meu marido!”. Disseram-lhe que o Mourad já estava no Marrocos, do outro lado da fronteira, a 2h de ônibus. Para se juntar a ele, bastava se deixar conduzir ao posto fronteiriço sem levar nada consigo, sem resistir, nem reagir. Como bezerros no dia da festa muçulmana do Aid El Adha, a pequena família se deixou sacrificar: chegou no Marrocos de madrugada e não encontrou nenhum rastro do Mourad.
O coitado passou mais três dias em um quartel do exército. Depois foi colocado em um trem rumo ao sul. Pulou de centro em centro sem saber qual crime se lhe imputava. Em fevereiro do ano 1976, ou seja, dois meses depois do seu arresto, foi entregue ao governo da Líbia, liderado então pelo tirano maluco Mouamar Kadaffi. Mourad passou 36 anos nas prisões líbias. Sem condenação. Sem recurso. Sem visita. No mais absoluto segredo.
2011, primavera árabe, o Kadafi é linchado por uma muvuca histérica. O vídeo deu a volta ao mundo. As vezes a democratização vem com um cheiro forte de podridão. No caos generalizado, as cadeias se esvaziaram. Mourad sai. Uma ideia fixa em mente: Onde está minha família? Não se sabe como ele conseguiu percorrer mais de 1000km até Oran, a cidade onde sempre morou. Voltou para casa. Lá achou uma família que nada sabia dos moradores originais (e legítimos) da casa. Tudo bem. Com a força da vontade, conseguiu o endereço de uma tia da esposa. A velhinha não o reconheceu. Os argelinos não a expulsaram em 1975 porque tinha pedido e conseguido naturalização. “Sua esposa mora em Oujda no Marrocos, te esperou dez anos seguidos. Sem notícias de ti, casou-se com outro homem. Suas filhas são adultas agora, casaram, uma foi morar na França, outra em Casablanca”
Ouvi falar que o Mourad vive hoje em dia em algum lugar do oeste da Argélia. Talvez em Oran mesmo. Informações aproximativas e incompletas. Nada de endereços ou números de telefone. Ninguém quer ir atrás de um morto.
Bravo M.Driss Ghali
Un article véridique qui décri très bien le drame vécu par de milliers de marocains d’Algérie. Reste à espérer que le devoir de mémoire qu’accomplit l’Association qui défend les droits des victimes spoliés par les autocrates d’Algérie serve de leçon pour abolir toute exaction infligée aux populations civiles innocentes qui constituent les dommages collatéraux des conflits entre Etats frontaliers.
Bonne continuation