Para acabar com o descontrole da segurança pública no Rio de Janeiro, é preciso seguir uma abordagem político-administrativa. Lembrem-se destas duas palavras: política (que remete ao poder e a seu exercício) e administrativa (que concerne ao controle da população pelo Estado). A solução consiste na aplicação simultânea e integrada de instrumentos políticos e administrativos. Dessa maneira, consegue-se privar os traficantes do ar que respiram, ou seja, do apoio da população civil. Graças ao silêncio e à colaboração mais ou menos passiva dos moradores, os criminosos são como peixe na água dentro das comunidades. A olho nu, é impossível distingui-los dos trabalhadores e das pessoas de bem. A menos que estejam ostentando armamento, eles andam incógnitos, entram e saem da comunidade sem levantar nenhuma suspeita. Se os moradores resolvessem apontar o dedo para os criminosos que vivem entre eles, a pacificação seria questão de dias. Infelizmente, estamos longe disso porque ninguém quer fazer o diagnóstico correto da situação.
Esquecer o bandido e focar no morador
A única prioridade de qualquer política de segurança pública no Rio de Janeiro deve ser reconquistar o apoio da população carente. Uma vez que os moradores das periferias cariocas comecem a colaborar com a polícia, a tão sonhada pacificação acontecerá naturalmente. Para desgraça do povo do Rio de Janeiro, as Unidades de Polícia Pacificadora nunca tiveram como missão trazer de volta a lealdade e o respeito da população beneficiada pela nova política. Foi seu primeiro pecado capital: subir o morro sem entender a natureza do problema, que é, antes de tudo, político-administrativo. Nenhum corpo de polícia no mundo – incluindo o legendário FBI – pode trabalhar com sucesso nas periferias cariocas sem ter uma compreensão nítida de que o único foco deve ser a população e não o criminoso. É a própria população que vai entregar o meliante ao Estado no dia em que ela se convencer de que é do seu interesse quebrar a lei do silêncio. Toda a arte da pacificação – um trabalho que vai bem mais longe do que o trabalho policial – depende da reviravolta dos moradores, que trocam de aliança e resolvem passar informações às autoridades.
Como conseguir reverter a passividade da população dos morros e das zonas de milícia?
É melhor não fazer nada do que subir o morro sem um Plano Estratégico de Pacificação
O primeiro passo é desenhar um Plano Estratégico de Pacificação, que consiste em um conjunto de ações e ferramentas articuladas entre si. Ele tem objetivos claros e de fácil medição. Os donos do plano sabem exatamente quando ele termina e em que etapa se encontra. Têm ciência do momento propício para declarar missão cumprida. Esses gestores públicos enxergam claramente metas, riscos e oportunidades e, sobretudo, conseguem inserir o Plano Estratégico de Pacificação em um programa de governo de longo prazo. Não existe plano de pacificação sem um programa de governo que responda à seguinte pergunta: que Rio de Janeiro queremos para daqui a cinquenta anos?
Quem afirma que a volta da paz ao Rio de Janeiro depende da redução da desigualdade, do fim da guerra às drogas, da intervenção militar ou da reforma da PM carioca está enganado, porque confunde instrumentos táticos com o Plano Estratégico de Pacificação. Os primeiros são isolados e desarticulados entre si, o segundo é um conjunto estruturado e sofisticado que atua simultaneamente em várias dimensões: segurança, assistência social, política municipal, economia local, transporte, saneamento, urbanismo, educação.
As UPP nunca fizeram parte de um Plano Estratégico de Pacificação porque tal plano nunca existiu. Faltou um roadmap que abrangesse um período de três ou cinco anos e que respondesse à seguinte pergunta: o que se faz depois da entrada das UPP e da subsequente fuga dos bandidos? A polícia achou que as gangues se acovardariam e migrariam definitivamente para Niterói ou para a Baixa Fluminense. A prefeitura acreditou que bastava abrir uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) no morro para ganhar o amor dos favelados. E a novela das nove jogou areia nos olhos do país inteiro ao glamorizar o modo de vida na favela pacificada: reuniu atrizes e atores atraentes em um cenário irreal, porém verossímil, chamado Complexo do Alemão (“Salve Jorge”, com Nanda Costa e Rodrigo Lombardi, em 2012). Foi uma alucinação coletiva.
Cada Plano Estratégico de Pacificação deve ter uma versão adaptada à realidade da população que precisa ser reconquistada. Isso é imprescindível porque cada bairro ou comunidade tem a própria história, suas lideranças comunitárias e seu ecossistema criminal. Nenhuma pacificação na Rocinha pode dar certo sem que os acessos sejam fechados por muros, separando-a da mata circundante. Na ausência dessa barreira, armas e combatentes continuarão fluindo, não importa o número de helicópteros e de drones mobilizados pelo poder público. No caso do Pavão-Pavãozinho, esse problema não existe, porque a favela tem basicamente duas entradas: uma por uma rua asfaltada que começa em Ipanema e outra por meio de um elevador.
Disciplina para seguir à risca o Plano Estratégico, sem pular etapas
Comecei este texto sublinhando a necessidade de uma ação político-administrativa. Chegou a hora de dar uma forma concreta a essa colocação.
Para reconquistar o apoio da população, há de se reconstruir o laço político entre o Estado e o cidadão. A matéria-prima desse laço se chama Legitimidade. Obedecemos a quem consideramos legítimo por ser o melhor entre nós, o mais forte, o mais representativo, o mais perto de Deus ou aquele que pode nos infligir uma grande dor se o desafiarmos. Na favela, o traficante tem uma vantagem decisiva, porque a população tem mais medo dele do que do Estado. O primeiro faz “micro-ondas” sem direito a penas alternativas nem recursos, o segundo costuma respeitar os direitos humanos e, apesar dos pesares, oferece vias para a denúncia de abusos, como a Corregedoria da Polícia e a Defensoria Pública.
A pacificação é um processo metódico que cria Legitimidade
Etapa 1: reocupar e saturar o território
Primeiro, dar um show de força por parte do Estado, ostentando os músculos. Significa enviar um grande efetivo para ocupar a favela e a melhor tropa, como o temido Bope (ou o Exército, nos lugares mais problemáticos). Ocupar o território e fazer saturação é preciso e responde a três necessidades essenciais: (a) neutralizar os elementos mais perigosos (prender os procurados pela Justiça, matar os violentos e expulsar os outros); (b) impressionar a população, reestabelecendo nela a percepção de que o Estado é forte e determinado; (c) acostumar os moradores a obedecer ao Estado em vez de seguir as ordens do tráfico. Por exemplo, decretar um toque de recolher noturno tem a utilidade de fornecer à população uma excelente desculpa para não servir de olheiro ao tráfico de drogas: “Desculpa, senhor traficante, não posso chegar até o ponto de observação porque os soldados prendem qualquer pessoa que ande na rua depois das nove da noite”.
Etapa 2: conquistar os corações
Segundo, dar “carinho” à população, trazendo-lhe serviços sociais e infraestruturas. Deve-se sempre ter em mente a única finalidade do Plano Estratégico: conseguir o apoio da população para isolá-la completamente dos traficantes. Não se trata de fazer o bem por caridade ou ideologia. Abrir uma UPA, uma escola ou uma linha de teleférico procura convencer a população de que vale a pena, sim, colaborar com o Estado: “Se eu me portar bem e passar informação para a polícia, minha vida e a da minha família vão melhorar, depende de mim”.
Há de se lembrar que, ao cabo da primeira e da segunda etapas, os moradores permanecem muito frágeis. Eles são ainda vulneráveis à intimidação ou à sedução das gangues. Engana-se quem pensa que o desfile diário dos blindados e das viaturas na favela traz segurança. A pacificação se torna realidade quando o morador diz “não” às propostas e às ameaças do tráfico. Dizer “não” para a turma do Beira-Mar ou do Nem exige coragem e heroísmo. Virtudes raras dentro e fora das favelas.
O brasileiro morador de favela confia em pouquíssimas instituições e não tem o WhatsApp do prefeito ou do deputado para reclamar ou prestar queixa. Se uma facção quiser se instalar no condomínio de classe média ou alta onde você mora, você com certeza irá chamar a polícia; e se o delegado demorar em investigar você irá pressionar seu vereador; e, se as coisas continuarem estancadas, você com certeza irá procurar um juiz ou um promotor, cujo contato lhe será fornecido por sua rede de amigos da faculdade ou do clube social.
O pobre não tem esse tipo de recurso. Vive isolado. Ninguém o defende na Câmara Municipal nem na sociedade civil, menos ainda em Brasília. Ele olha para essas figuras com desconfiança e estranheza. As únicas instituições que gozam da confiança das camadas mais humildes são as igrejas pentecostais: a única sociedade civil que permanece na favela 7/7 dias e que tem sempre as portas abertas. Infelizmente, as igrejas não querem ouvir falar de segurança urbana. Articularam um modus vivendi com os traficantes e conseguem trabalhar nas comunidades sem serem atacadas. Dito de outro modo, o pobre está sozinho e sem apoio nenhum diante das mais perigosas facções criminosas do Brasil: Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Terceiro Comando Puro, Liga da Justiça etc.
Etapa 3: fazer política para reconstruir a capacidade de autodefesa dos habitantes
Ciente do isolamento do morador da favela, o Plano Estratégico de Pacificação reserva uma atenção especial e seus melhores recursos humanos para a fase de reconstrução política da favela.
Não se trata da etapa menos importante apenas por ser a última. Muito pelo contrário, esta é a etapa mais importante. Deve ser encarada depois de se haver “limpado” o ecossistema dos traficantes mais nocivos (etapa 1) e criado simpatia no seio da população (etapa 2). Fazer política significa implicar as elites locais na gestão dos assuntos das comunidades. Por “elite”, eu me refiro aos líderes comunitários que surgiram espontaneamente ou que ainda estão nos bastidores. Essas elites locais devem encontrar seu lugar na política municipal e na estadual. Se for preciso, um sistema transitório de cotas (p. ex: vagas garantidas de vereador) pode ser considerado. O importante é que os moradores saiam da passividade e comecem a cobrar educação, saneamento e segurança, entre outros, de pessoas oriundas da mesma realidade. Trata-se de criar anticorpos contra a volta das gangues (elas vão sempre infiltrar meliantes como vanguarda de uma retomada). De fato, é muito mais difícil para uma facção intimidar uma comunidade bem representada e defendida em nível de prefeitura ou governo estadual do que uma favela desconectada do poder local.
A Legitimidade nasce e se fortalece a cada uma das etapas citadas acima. Não se pode gritar “missão cumprida” antes de a etapa três ser finalizada e bem-sucedida. Todas as ferramentas são de natureza política e administrativa. Estão ao alcance. It is not rocket science, como diriam os americanos! Complicado é encontrar líderes e gestores competentes o suficiente para dosar os ingredientes e seguir à risca o Plano Estratégico de Pacificação.
Esta batalha pode ser ganha. Não estamos na Síria nem na Colômbia dos anos 1980. Ainda não. Mas, a cada recuo do Estado de Direito, afasta-se um pouco mais a perspectiva de recuperar de uma vez por todas os territórios perdidos da república, onde vive um terço da população do Rio de Janeiro.
Driss Ghali, maio de 2018
Agradecimentos:
O conceito de Plano Estratégico de Pacificação é de minha autoria. Contudo, rendo homenagem a David Galula (1919-1967), oficial da infantaria e pensador francês que abriu meus olhos para o tema da pacificação.
Meus agradecimentos vão também para o General Roberto Escoto (Exército Brasileiro), que aceitou compartilhar comigo lições aprendidas no Haiti e no Complexo da Maré.
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