Pacificação é um conceito de origem militar que vem sendo usado com frequência no noticiário brasileiro. Idealizado para situação de guerra e de conquista territorial, deve ser manipulado com muito cuidado na esfera civil.
O objeto da pacificação é o território. Diz-se que uma região é pacificada quando a manutenção da ordem, dentro de seus limites geográficos, depende do emprego de uma tropa convencional e com efetivo padrão.
Provavelmente, o bairro onde você mora é coberto por uma ou duas viaturas da PM, que consegue patrulhá-lo sem se expor a tiros e emboscadas. A situação é totalmente diferente em algumas periferias urbanas (no Rio de Janeiro obviamente, mas também em Fortaleza, Salvador ou Maceió), onde somente a tropa de choque e o exército conseguem circular pela via pública e coibir o cometimento de crimes e delitos. A distinção é importante: em um caso, policiais comuns e em número reduzido conseguem atender às necessidades da população; no outro, precisa-se de forças com treinamento especial e de efetivos maiores para cumprir a mesma missão. Dito de outra maneira, o policiamento em área pacificada sai bem mais barato do que em área de conflito. Eis um dos motivos pelos quais o poder público se retirou dos morros cariocas a partir dos anos 1980: não tinha ou não queria gastar dinheiro trazendo segurança às populações mais vulneráveis.
O propósito da pacificação é fazer uma transição: de um estado de alta periculosidade, marcado por resistência sistêmica ao trabalho policial, para uma situação em que a polícia passa a cumprir suas missões rotineiras sem precisar de reforços exteriores. O resultado da pacificação não é a segurança que todo cidadão está no direito de exigir do Estado democrático. Basta reduzir a letalidade dos policiais e os “contatos hostis” com as gangues a um determinado nível para decretar “missão cumprida”. Assaltos, homicídios e roubos continuam nas regiões pacificadas, porém em número menor, e sem que a polícia seja alvo de tiros cada vez que atende a uma ocorrência.
Isso pode parecer decepcionante. Porém, a pacificação é um passo fundamental no longo e penoso caminho que leva a uma segurança pública aceitável. Se a polícia consegue entrar na favela, o SAMU, o médico e a assistente social vão poder trabalhar e prestar serviços aos moradores. O fiscal da prefeitura e o engenheiro da empresa de eletricidade também. Depois vêm os Correios e os bancos públicos, como a Caixa. Querendo ou não, esses agentes do Estado formam uma valiosa rede de informantes. Infiltram-se naturalmente no tecido social porque conseguem RG, CPF, telefone e endereço exato de cada um. Cruzando os dados coletados, pode-se estimar com precisão quantos moradores há em cada casa, em cada beco, seu nome, suas despesas pagas com cartão e seus movimentos (rastreamento do chip do celular).
Uma polícia preparada consegue reunir esses dados e usá-los em investigações de homicídio, roubo ou extorsão. Consequentemente e de maneira gradual, a impunidade acaba recuando. Sendo assim, criam-se incentivos para quebrar a lei do silêncio. Os moradores, vendo que o Estado consegue elucidar crimes, mostram-se mais propensos a denunciar suspeitos e a fornecer inteligência à polícia. Não tem segredo: a segurança nasce quando a população aceita colaborar com o Estado.
Insisto que pacificação não significa segurança. A primeira é um instrumento de natureza militar-policial, a segunda é um estado cuja preservação depende do sistema judicial, dos presídios, da família e do urbanismo, entre outros fatores. A pacificação não deve ser o objetivo da política de segurança pública. Quando for usada, ela deve ser meramente uma etapa, um grau a mais em direção ao estado desejado pela sociedade: ruas pacatas, a sensação de não correr perigo dentro e fora das residências etc. Usando uma metáfora, eu diria que se limitar a pacificar seria como tentar aplicar uma quimioterapia a um doente de câncer sem pensar em sua nutrição, higiene pessoal e estado de ânimo. Pode dar certo se ele tiver muita sorte, mas não costuma ser o caminho indicado para a remissão.
Leave a Comment