O vigor da corrupção no Brasil (e em amplas partes da América Latina de modo geral) leva a pensar que a solução não pode ser puramente jurídica. Como uma hidra de mil cabeças, a corrupção renasce após cada decapitação. A própria operação Lava Jato no Brasil apenas aflora o tema corrupção, atinge de raspão um complexo entremeado de interesses ocultos e de raízes tão podres como resistentes. No Brasil, o combate a corrupção assemelha-se a guerra contra as drogas: uma luta difícil, frustrante, sempre por recomeçar, muitas vezes inútil, mas com certeza necessária. Do mesmo modo que não se pode autorizar a venda livre do crack, não se pode tolerar a prática da corrupção. Tanto como o crack, a corrupção aniquila a autoestima e a resistência do corpo social. Esse quadro requer criatividade e ousadia por parte das elites: fazer o diagnóstico certo (sem interferências ideológicas nem agendas escondidas) e ter a coragem de mudar de política. Testar e errar até acertar.
Antes de formular recomendações praticas, cabe primeiro entender a natureza da corrupção. No caso do Brasil, ela pode ser enquadrada como uma forma primitiva de participação popular no poder. A corrupção é bem mais do que um desvio de conduta, ela é uma mensagem política dada milhões de vezes por dia: na empresa, no mercado, na rua, na repartição pública, no congresso nacional. Basta abrir os olhos para ver os inúmeros gestos de “dedo do meio” direcionado ao Estado a cada vez que alguém paga ou aceita uma propina. Afinal o que é a corrupção? Uma ilegalidade que busca infringir a lei, criar um atalho dentro dos regulamentos, gerir um curto-circuito no seio do funcionamento do Estado para agradar interesses individuais e privados. Dito de outro modo, a corrupção é uma resistência. Trata-se de uma resistência popular praticada tantos por ricos como pobres, não importa a região, a origem ou a orientação política. Corromper é de fato resistir. Dizer não a máquina do Estado, limitar seu poderio…de uma maneira silenciosa e estéril.
A corrupção costuma acontecer no sigilo (cada vez mais relativo) dos cafés, das conversas privadas, dos sítios etc. Sem fazer greve nem explodir bomba nenhuma, a corrupção acaba destruindo dois fundamentos essenciais do Estado: a autoridade e a legitimidade. Quando um fiscal recebe dinheiro para fechar os olhos sobre uma calçada torta e esburacada, ele dá duas facadas diferentes no corpo do Estado: a primeira fere a autoridade, ou seja, o poder de vigiar o cidadão e de punir descumprimentos das normas legais; a segunda facada atinge em cheio a legitimidade da instituição. Tira dela o selo da respeitabilidade já que tudo tem um valor, que todos se compram, basta querer e poder pagar. Revolução inacabada, sem liderança, sem rosto, sem credo: luta estéril! É a guerra de todos contra o Estado. Assemelha-se a uma rixa, uma pancadaria, uma briga de torcida que se repete regularmente. Nada a ver com uma luta de morte. O brasileiro não sabe viver sem o Estado, o odeia, o xinga, o engana, o rouba, mas nunca lhe aplica a estocada final. Aliás, o Estado, sempre “safo”, adotou uma medida de bom senso ao se rodear de uma camada de gordura atávica e egoísta chamada funcionalismo público. Sua utilidade não é servir a população, é mais bem separar o Poder do povo mediante uma classe de funcionários bem pagos e centrados nos interesses corporativistas.
A força nunca desmentida (parece que cresce a cada ano) da corrupção se alimenta dessa insurreição popular contra o estado. A raiva e o desapontamento vêm sedimentando na alma do brasileiro há 500 anos. Órfãos de elites capazes de formular uma visão nova para o país, desprovidos de lideranças habilitadas para fazer uma revolução, os brasileiros fazem a própria justiça: sonegando e corrompendo.
Como concluir? Se concordamos que a corrupção é uma forma real de participação política, teríamos feito metade do caminho. Resta imaginar e criar incentivos para convencer o brasileiro que seu voto, sua militância e seu envolvimento com assuntos públicos, lhe trará um melhor retorno do que corromper o guarda ou o fiscal.
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