Vou ser sincero: não gosto de futebol. Sinto tédio ao assistir um jogo. Um belo jeito de me irritar é me obrigar a escutar um jogador ou um técnico falar em uma coletiva de imprensa. Tem tanta coisa importante no mundo que precisa da nossa atenção! É perda de tempo insistir em ouvir o que x ou y achou da arbitragem ou do chute de tal ou tal! Minha empatia com os hobbies do outros tem limites.
Feito o devido dever de sinceridade, vou ao que interessa. Para que serve o futebol? Refiro-me ao futebol oficial, aquele da FIFA, da Champions League e da CBF. Ele desempenha duas funções de sumo interesse e que explicam, em grande parte, o papel central dessa modalidade no mundo moderno.
A primeira função do futebol é nos fazer acostumar a viver com um grau extremo de desigualdade econômica. A cada domingo, vejo milhões gritando o nome de jogadores que faturam mais de um milhão por mês (Neymar ganha mais de 4 milhões de reais mensalmente no Paris Saint Germain). De fato, a maioria dos brasileiros, franceses e espanhóis se acostumou com essa situação. Achamos normal um ser humano ganhar em cinco anos mais do que um funcionário CLT padrão ganha em uma vida inteira de trabalho. Não vi ninguém protestando contra essa desigualdade, virou parte do status quo.
Sendo um liberal econômico, eu aceito a desigualdade e a entendo como um combustível da economia. Digo mais, a desigualdade é certamente um dos motores mais potentes da criação artística. Quantos óperas, quantas obras primas da literatura nasceram na Rússia soviética em 70 anos de comunismo? E na Cuba castrista? E na China do Mao? Pouquíssimas. O comunismo soviético inventou o realismo socialista (feio e chato) além de vários dissidentes que pularam a cortina de ferro para nos contar o quanto a ditadura do proletariado castrou as mentes livres. É pouca coisa quando se compara a riqueza e genialidade da literatura russa do século XIX. Gogol, Tchekhov, Dostoievski para citar somente alguns autores. Ao mundo deram obras universais enquanto habitavam um país classista, na beira do feudalismo mais atrasado. Uma vez que se instalou a ditadura do proletariado e acabaram-se as desigualdades (em teoria), secou a fonte de inspiração. Alguém lembra do cinema soviético dos anos 1960? Eu não. Não suporta a comparação diante das proezas do cinema italiano da Cine Citta, da nouvelle vague francesa ou de Hollywood. Fellini, Godard ou Polanski teriam sido impedidos de criar em um país comunista por falta de assunto, falta de tensão, falta de energia vital, falta de desigualdade, ou seja, falta de inspiração.
Porém, o que o futebol-business nos faz engolir é outra coisa: a absoluta submissão a desigualdade como se fosse um destino manifesto. Inevitável e decidido por uma força divina e sempre perfeita: o Mercado, a lei da oferta e da demanda. Neymar é um craque, merece ganhar um milhão de reais por semana enquanto eu faturo 500. Essa é a mensagem subliminal. Se você aceitar isso, qual direito tem de brigar com o CEO que te dá emprego porque ele ganha 100 vezes mais do que você? Como argumentar? Chefe você não pode receber tanto apesar de administrar assuntos complexos, mas Neymar pode porque ele joga bem bola… Falta um pouco de consistência em tudo isso.
A segunda grande função do futebol é sustentar a fábula do elevador social. Não escapa a ninguém que a maioria dos jogadores são oriundos das classes mais humildes. Basta olhar para a seleção brasileira para enxergar todas as variações de cor típicas do povo real, aquele das periferias urbanas. Ver esses rapazes, que tem minha cor e meu jeito de falar, acumular bens e fama me convence que a sociedade funciona. Deram sorte e saíram da miséria. Então, o sistema é valido. Para que se revoltar? Apesar dos políticos ruins e das escolas podres, existem casos reais de filhos do povo que viraram ricos antes dos 25 anos: Gabriel Jesus, Neymar, Thiago Silva etc. Nessas condições, o sistema político se estabiliza porque não existe mais motivo de desobedecer. Ninguém vai derrubar uma classe política que governa um país onde um rapaz pobre, pardo, evangélico, da baixada santista vira um herói nacional.
O elevador social existe. Porém, não costuma parar no campo de futebol. Ele se sustenta em educação de qualidade, muita disciplina e algo de sorte. Os ingredientes do sucesso são esses. Quem quiser te tirar do caminho do sucesso não vai te falar abertamente que seu lugar é servir suco na padaria. Muito pelo contrário. Ele vai passar mão na sua cabeça, te chamar de vítima disso e daquilo e colocar na sua mente que você merece algumas migalhas (como cotas ). No dia de jogo, ele vai te abraçar como se fosse seu irmão. Vai gritar Corinthians! ao seu lado até perder a voz. Mas segunda de manhã, a batalha recomeçara e seu parceiro da véspera estará bem decidido a levar a vantagem sobre você. Convencido que o importante na vida é se divertir e ser feliz, você provavelmente chegará menos preparado do que ele na entrevista de RH. Não vai saber falar inglês como ele porque estudou em escola pública. E quando vai perder a vaga, lhe restará a certeza que meninos da sua idade, origem social e orientação religiosa, ganham milhões. O problema não é o sistema. O problema é a falta de condições.
No fundo, Gabriel Jesus ou Thiago Silva ganham pouco diante do retorno que causam ao sistema. Servem de amortecedor social sorridente e atlético. Não se precisa de capacetes hoje em dia para oprimir um povo. Basta juntar 22 rapazes especializados em chutar bola para divertir a atenção sobre os bastidores que ninguém deve ver.
Driss, ressaltar o uso político/estratégico do futebol parece fazer sentido mas perde o efeito em países como Alemanha, Suíça e Inglaterra, não? Você enxerga os mesmos artifícios nestes países? Um abraço.
Alexandre, obrigado pela atenção e a participação.
Acredito que a “utilidade” do futebol seja bem maior na Europa occidental do que no Brasil. Por là, as desigualdades cresceram muito desde digamos os anos 1990. E o futebol (entre outros fenomenos populares) virou um business transnational naquele mesmo momento por decisão da União Europeia que permitiu por lei as transferencias de jogadores entre teams (o famoso Mercato). Dessa maneira, nasceu a figura do jogador milionario, um fato que não existia na era do Michel Platini por exemplo (anos 80).