Ninguém chega a ostentar o recorde mundial de homicídios à toa. Não existe coincidência ou azar em temas tão sérios como a segurança pública. O Brasil tornou-se uma espécie de inferno de baixa intensidade, um lugar onde a vida vale pouco e o medo impera pelo acúmulo de múltiplos círculos viciosos, interligados entre si e que conspiram para manutenção do status quo. De fato, custa caro quebrar esses mecanismos um por um: necessita-se coragem, criatividade e dinheiro as vezes. Virou costume aceitá-los como se fossem “coisas da vida” como uma chuva de verão em São Paulo ou uma seca no Nordeste: fatos inevitáveis e que impõem medidas de cautela e proteção por parte do cidadão. Sem mais.
Nas linhas a seguir, vou delinear os três tipos de círculos viciosos que assolam o Brasil. Não irei entrar em detalhes nem muito menos tentar descrever a totalidade dos círculos ativos porque são milhares e milhares nos quatro cantos da federação.
Falência no controle político-administrativo do Estado sobre a população
Todos ouvimos falar da noção de estado de natureza (Thomas Hobbes) onde não existe Estado nem Lei, uma situação onde o homem é um lobo para o homem. O mais forte consegue tudo o que quiser à custados outros que pagam com a vida e a integridade física os caprichos do macho alfa. A criação do Estado foi motivada, entre outros fatores, pela necessidade imperiosa de evitar a volta do estado de natureza. Mediante a submissão ao Estado, o povo consegue em troca a segurança. As pessoas de bem renunciam a fazer a própria justiça porque têm certeza que a força pública barra o caminho das pessoas do mal, ora pela prevenção ora pelo castigo.
No Brasil, o Estado brilha pela incompetência, em todas as áreas incluindo a segurança. Ele próprio criou um círculo vicioso, absurdo e totalmente artificial, ao renunciar a ter uma polícia única que faça o patrulhamento ostensivo e a investigação. Nadando a contracorrente da maioria dos países do mundo (França, Espanha, Estados Unidos, Alemanha, Japão entre outros exemplos de países sérios), o Brasil conta com duas policias: a civil e a militar. Não surpreende que sejam antagônicas, invejando uma da outra as prerrogativas, os equipamentos e o prestigio para com o governador e a população. Essa rivalidade e essa divisão artificial do trabalho da polícia cria ineficiências óbvias cujo reflexo maior é a baixíssima taxa de elucidação dos crimes e delitos no Brasil, incluindo furtos, roubos, homicídios, entre outros. Cria-se de maneira natural uma impunidade “organizada” pelo próprio Estado que autolimita artificialmente a própria força e eficiência.
Não basta chegar a essa conclusão para resolver o problema. Precisa-se de muita coragem para impor uma reforma chamada unificação das polícias brasileiras. Quem vai querer enfrentar os corporativismos- essa outra doença brasileira- que intoxicam as categorias que têm algo a perder com a mudança? Quem vai chamar para si a responsabilidade de mandar policias embora porque não compactuam com a unificação das forças por ideologia ou critério pessoal?
Fecha-se assim um dos maiores ciclos viciosos que contaminam a segurança pública brasileira. Ninguém faz nada. Os ricos recorrem a medidas paliativas: pagam seguros caríssimos contra roubo, blindam carros, vivem atrás de grades. Os pobres vivem abaixo da guarda armada do crime organizado que traz uma segurança relativa nas áreas que domina. As empresas, quando podem, repassam ao consumidor os custos da insegurança (a título de exemplo mandar uma encomenda ao RJ sai mais caro por causa dos constantes roubos a carga nos acessos a cidade maravilhosa).
Falência do controle social
Não escapa a ninguém que a maioria dos presos são homens. No Brasil, são quase 700 000 detentos contra um pouco mais de 50 000 mulheres encarceradas. Não escapa a ninguém também que uma certa categoria de crimes – aqueles que têm altíssimo impacto simbólico na sociedade e psíquico sobre as vítimas – são cometidos por jovens. Duvido que você tenha visto um idoso assaltar com arma no farol ou um homem de idade média correr armado com fúsil em um beco íngreme e mal iluminado…
Qualquer sociedade no mundo conta com um tipo de controle social sobre os jovens, as faixas etárias mais propícias a usar violência e a tumultuar a harmonia (o status quo para ser sincero) entre classes e comunidades dentro de uma mesma sociedade. O que chamo de controle social sobre os jovens é um conjunto de crenças, valores e práticas cujo objetivo primário é prevenir o uso da violência e o respeito das regras. Exemplo de medida de controle social: impedir seu filho de voltar tarde a casa ou de frequentar tal pessoa. No Brasil, esse controle é fraco e pontual. Representa em sí mais um ciclo vicioso difícil de quebrar.
Como funciona? Nos anos 70, milhões de brasileiros deixaram o campo e o Nordeste rumo as cidades do Sudeste. Durante a migração, famílias foram deslocadas sendo o pai quem costuma “pular fora”. Portanto, nasceu e cresceu nas periferias urbanas uma geração de meninos sem figura paterna. A família monoparental onde o pai está sumido virou uma norma dentro das camadas mais frágeis da população, aquelas mais expostas ao poderio do crime organizado e a falta de oportunidades. Estamos todos a pagar o preço dessa evolução: os menores cometem crimes hediondos e mostram uma crueldade surpreendente. “Compram” uma identidade nova ao matar e estuprar como se fossem desesperados para “pertencerem” a uma nova família (o PCC por exemplo) por que seus parentes não cumprem a missão, ora por omissão ou incapacidade.
O ciclo vicioso se fecha quando o poder público agrava a situação ao manter um Estatuto da Criança e do Adolescente que brilha pelo angelismo. Trata-se de um verdadeiro passaporte para a impunidade.
A falência do controle social é tão drástica que se criou uma contracultura do menor infrator com sua música, tatuagens, gíria, territórios e valores. A passagem pela cadeia não é mais um castigo. Forma parte de uma trajetória de vida, claramente assumida e valorizada nas ruas, que visa a acumular capital intelectual (diplomas em assalto, extorsão e tortura) e capital social (networking e prestigio).
Quem vai querer esse círculo vicioso? Quem vai aguentar ser chamado de conservador e reacionário por querer endurecer as leis penais aplicadas aos menores? Quem vai fazer carreira política ao defender a família brasileira sabendo que esse termo causa alergia a boa parte do espectro midiático e acadêmico que parecem sonhar com uma sociedade sem limites nem proibições?
Falência no controle moral
Ter vergonha na cara. Sentir nojo de sí quando comete algum ilícito. Isso é o controle moral. Ele é o objetivo final de todo processo civilizatório: inibir dentro da cabeça do sujeito a quebra das regras de convívio social.
O povo japonês tem fama de ter atingido ápices nessa área. Outros não tiveram o mesmo sucesso.
Influenciar valores e comportamentos é o papel primordial da família e da escola. São as instituições que costumam ensinar a noção de certo e errado e seus corolários: a vergonha e a culpa. Acontece que essas duas instituições atravessam uma crise profunda. Não cabe a presente matéria mergulhar na verdadeira pane que afeta a capacidade normativa (de criar valores, normas e comportamentos) da família e da escola. Elas vêm capitulando, dia após dia, frente ao culto do individualismo e a cultura da escusa, uma ideologia detestável que usa argumentos baratos para tirar a responsabilidade do ofensor e silenciar a voz do ofendido. Houve uma época em que a Igreja era líder de opinião no sentido de moldar valores e sentimentos. Esse tempo acabou. O catolicismo no Brasil está desmoralizado pelos escândalos de pedofilia. As igrejas pentecostais têm seus problemas também personalizados por bispos condenados pela justiça ou foragidos.
Sem poder criar vergonha e sentimento de culpa, a sociedade brasileira carece de instrumentos para limitar a violência. O país empobreceu-se humanamente: perdeu a capacidade a gerir cortesia, amabilidade e empatia, ferramentas sociais (que ligam o individual ao coletivo) e que permitem inibir as ofensas as regras. Tudo vira assunto de polícia e de justiça. Chama-se o 190 ou se faz uma comunicação extrajudicial por assuntos que outrora eram resolvidos por uma bronca ou um sermão. Há quem vê nisso um progresso, eu não.
E a miséria e a desigualdade, a onde cabem? Nunca acreditei que a pobreza fosse sinônimo de marginalidade. Seria insultar os pobres induzir que a falta de recursos materiais explica crimes e delitos? A operação Lava Jato mostrou que ricos herdeiros e grandes executivos roubaram e roubaram muito. E as pacatas megacidades do mundo árabe (Cairo por exemplo) e da África (Kinshasa no Congo é uma delas) demostram diariamente que a extrema miséria não implica o cometimento de crimes. Esses lugares têm o que não temos: um bom controle social e moral da população.
Ora, é obvio que a miséria é o r refúgio ideal dos bandidos porque os pobres carecem de meios para se defender. Se o crime organizado escolhe Paraisópolis como santuário e não o bairro do Morumbi é porque ele sabe que a polícia não deixaria a máfia tomar posse das ruas e das casas onde mora a elite paulista. Quem mora em favela não tem como acionar vereadores e deputados quando um baile funk tira seu sonho ou uma feira livre de drogas se organiza diariamente na rua ou na pracinha onde as crianças brincam. Nós podemos sim reclamar e procurar auxílio no Estado, os pobres não. Eis a razão pela qual o crime costuma acompanhar as manchas de misérias das cidades. Não é porque o pobre é mais propenso do que nós a infringir as leis.
Bonjour,
Je suis un franco brésilien et je lis à la fois votre blog et vos articles dans Causeur. Je partage votre point de vue sur pas mal de choses. Vivez vous à Sao Paulo comme moi ?
Jean-Yves Carfantan.
Consultant – AgroBrasConsult.
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São Paulo-SP
Brasil.
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E-mail : jyc@agrobrasconsult.com.br
Merci pour ce message. Je vous écris très vite.
A bientôt,
Driss