“Não reaja! Nunca reaja a uma tentativa de assalto! Deixe o ladrão levar tudo e procure uma delegacia depois!” Quantas vezes temos escutado isso da boca de policiais e especialistas em segurança? Faz cinco anos que moro no Brasil e posso dizer com absoluta certeza que todo santo dia que liguei a TV (sou viciado nos noticiários) ouvi uma advertência dessa. “Não reaja!” Fórmula perfeita para a submissão. Não se perde nenhuma oportunidade para solicitar a apatia e a resignação. “Deixe-se humilhar! Ajoelhe-se diante do seu agressor e talvez ele não te dê um tiro!” O Brasil inventou a democracia dos cidadãos humilhados.
O Brasil inventou a democracia dos cidadãos humilhados
A questão da segurança pública no Brasil não é nenhum bicho de sete cabeças. Não estamos lidando (ainda) com a nata do crime organizado (‘Ndrangheta calabresa, Camorra napolitana, Yakuza japonesa, máfia ítalo-americana etc.). Afinal de contas, não foi tão difícil reocupar os morros cariocas entre 2010 e 2014, não houve resistência armada, não houve armagedom urbano na forma de retaliação do tráfico nas áreas nobres da cidade. Os temidos bandidos fugiram e se esquivaram do confronto. Na época (acredito que nada tenha mudado ainda), as facções que dominavam as favelas do Rio de Janeiro não tinham nem um traço da “classe” das FARC colombianas ou do Sendero Luminoso peruano. Prova disso foi que uma centena de policiais militares (pagos com água e pão, como dizia Pablo Escobar) conseguiu administrar a segurança do enorme Complexo do Alemão durante longos meses, sem necessitar do apoio do Exército. Eu mesmo visitei o Alemão em 2013 e constatei a facilidade não fingida com qual os policiais patrulhavam ruas e becos. No mesmo ano, subi o Vidigal e não vi nenhum sinal de presença do tráfico.
Tudo foi abaixo quando Sérgio Cabral resolveu saquear os cofres estaduais e tirar do poder público os instrumentos necessários à sua missão: combustível, munição, programas sociais para a população, remédios nos postos de saúde etc.
Unificar as polícias estaduais, ou seja, militar, civil e rodoviária, conseguiria reduzir drasticamente a delinquência. Cometemos a loucura de separar a função de polícia judiciária (aquela que investiga e trabalha em coordenação estreita com o promotor) da função de manutenção da ordem. Nenhuma nação séria dá um tiro no próprio pé ao reduzir artificialmente a eficiência da polícia criando conflitos desnecessários entre o policial que prende em flagrante (PM) e aquele que decide se apresenta ou não o caso ao tribunal (delegado). A França tem duas polícias, uma militar (Gendarmerie) e uma civil (Police Nationale): a primeira cuida exclusivamente das áreas rurais e a segunda, das cidades. Cada uma em seu canto, responsável por seu resultado, sem desculpas nem conflitos de ego entre coronéis e delegados. Situação similar à da Espanha, com a simetria entre Guardia Civil (zonas rurais e de fronteira) e a Policia Nacional (centros urbanos).
O Brasil, porém, escolheu o atraso. Obviamente, lutar contra o crime organizado não é tarefa fácil, mas diga-se de passagem que manter duas polícias concorrentes em nível estadual (civil e militar) equivale a colocar cacos de vidro no tênis de um corredor de maratona. Enquanto ele sangra a cada pisada (no Rio de Janeiro, morre um policial a cada dois dias), seu concorrente (o crime) corre com tranquilidade, seguro de que irá ganhar a competição sem fazer muito esforço.
Não sou nenhum gênio nem um especialista em segurança: se cheguei a essas conclusões lendo e entrevistando observadores e profissionais, significa que qualquer um no gabinete do Ministério da Justiça conseguiria desenhar um roadmap sério para a segurança pública deste país. Falta vontade política e um pouco de curiosidade intelectual.
No fundo, a insegurança é um ativo na mão do Estado. Longe de ser uma limitação de seu poder, tem que ser enxergada como um instrumento a mais ao alcance das burocracias para oprimir a sociedade. A insegurança é útil a vários interesses, incluído o desgoverno que chamamos de democracia brasileira, e que no fundo não é nada mais do que convocar a votar uma sociedade que nem consegue ir à padaria sem ser assaltada. Se você é instruído a nunca reagir diante de um indivíduo que o ataca pelo dinheiro do pão, como pode reagir ao ataque da máquina político-administrativa que o achaca com o dinheiro dos impostos? Se qualquer idiota pode assaltá-lo na esquina, como você vai impedir o mega-assalto aos cofres públicos, que representa o conluio incestuoso entre empresários e políticos?
Conheço poucos casos no mundo ocidental de tanto cinismo político.
O cidadão brasileiro abandonou as ruas. Não sai mais para passear com os filhos: prefere a tranquilidade dos shopping centers fechados (nem a luz do sol tropical ali entra). Não temos mais uma vida pública, ou seja, uma existência normal na via pública, que é o lugar onde se exerce a cidadania. Uma pessoa que vive atrás das grades eletrificadas de seu condomínio tem condição de se organizar com o vizinho para fazer uma passeata? De jeito nenhum. Elas são unidas pelo medo (de ser roubadas ou pior) que impossibilita qualquer tomada da rua. A vida comunitária sumiu, as praças são vazias por serem sujas e perigosas, as crianças deixaram de explorar o bairro porque andar desacompanhado virou sinônimo de risco de sequestro, assalto e abuso. A rua diminuiu: virou um mero espaço de trânsito perigoso e malcuidado entre a casa e o shopping ou a casa e o trabalho. A vida cívica é suspensa porque os cidadãos são privados de seu direito de ir e vir livremente. O toque de recolher é 24/7 e atinge as mulheres e as crianças em cheio, por obrigá-las a ajustar caminhos (rara vez o mais curto) e horários ao quadro de insegurança urbana. Vivemos “ligados” o tempo todo, atentos aos sinais prenunciadores do assalto, e “desligamos” de fato a consciência cidadã. Enquanto nações avançadas ensinam às novas gerações liberdades e responsabilidades, nós treinamos nossos filhos em técnicas de sobrevivência. O brasileiro, em idade ainda precoce, sabe detectar uma atitude suspeita a cem metros e pular do lado certo do portão em um instante. Cultura da presa, mentalidade de quem costuma estar embaixo na cadeia alimentícia. O que esperar de quem tem medo da sombra? “Vai que…!”
O caos urbano, longe de unificar o povo, explode-o em milhares de condomínios (de classes média e alta) e de vilas (de gente humilde). Os primeiros vivem sob o império da segurança privada (armada, muitas vezes) e os segundos não têm escolha a não ser se submeter à justiça do tráfico, que lhes oferece certa sensação de segurança em troca de que fechem os olhos sobre as bocas de fumo e as cargas roubadas. Alguém acredita seriamente que uma sociedade acovardada desse jeito vai exigir mudança política? Todos têm medo de todos. Moema tem medo do Capão Redondo, Alphaville tem medo do Rio Pequeno, Vila Isabel, do Morro do Salgueiro. Receita formidável para dominar a sociedade: afastar a classe média das massas com uma alta dose de medo e violência.
Conheço poucos casos no mundo ocidental de tanto cinismo político. O Brasil virou um monstro que consegue combinar uma vida democrática de fachada (deputados e vereadores gastando dinheiro público) e uma opressão do corpo eleitoral por forças medievais que não hesitam em matar para roubar.
Quando se fala em alienação, todos pensamos em futebol e carnaval. Mas o Brasil foi mais longe ainda, completando o cerco à sociedade com uma insegurança em grande medida artificial, por ser fruto da autossabotagem do próprio sistema que deveria zelar pela tranquilidade da população. A fórmula brasileira para a governança seria: “Relaxe e goze, não leve a vida tão a sério e nunca reaja!”. É a teoria do Neymar, do Tiririca e do Beira-Mar.
Tristes trópicos.
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